A Morte de Beethoven
Meu celular tocou, assustando-me e eu atendi rapidamente. Era minha esposa.
- Oi amor, tudo bem?
- Não... - respondeu ela, e eu imediatamente já me preparei para mais uma bomba. Quanto iria custar desta vez?
- O que aconteceu? - perguntei, desviando o olho da tela do meu computador. Quando começa assim, é melhor estar completamente concentrado.
- O Beethoven morreu.
Confesso que levei uns dois segundos para processar a informação. Um “Quem?” involuntário quase escapou de minha boca, mas felizmente consegui me controlar. Beethoven era o nome do pequeno peixe Beta de minha filha.
- Oh, amor, que pena. O que aconteceu? Foi a gata?
- Não, eu não sei o que aconteceu! Quando voltei da academia fui alimentá-lo e ele estava morto.
- Ele já estava bem velhinho...
- Como a gente vai contar pra Liz?
Putz, nem tinha pensado nisso! O Beethoven foi o presente de aniversário da Liz do ano passado.
- A gente conta para ela numa boa. Fica tranqüila, ela vai entender.
Para falar a verdade, a Liz fazia tempo que não dava muita atenção ao seu peixe. Só se lembrava dele quando tinha visita em casa e ela falava com todo orgulho que o peixinho era dela. Mas com um cachorro e uma gata em casa para dividir sua atenção, o peixe acabava ficando para segundo plano, restando aos pobres pais a tarefa de alimentá-lo e manter seu aquário limpo. Mas Tatiana não compartilhava minhas impressões.
- Será?
Bom, logo saberíamos. Saí do trabalho pensando nisso. Lembro de quando ela ganhou o peixe, pensei que seria uma excelente oportunidade para lidar sobre um assunto delicado para sua idade: a morte. E a ocasião havia chegado, e eu nem tinha pensado no que iria dizer de modo a não traumatizá-la pro resto da vida.
Peguei a Liz no colégio, e fomos para casa, conversando normalmente. Jantamos. Ela não sentiu falta do aquário, como eu imaginava, pois o tínhamos deixado na prateleira mais alta da sala, longe do alcance da gata, que já o havia derrubado anteriormente, assustando a todos. Felizmente naquela vez ele havia escapado ileso.
Depois do jantar, a chamamos para conversar e ela veio reclamando, pois tinha combinado que iria se encontrar com uma amiga no MSN, e blá, blá blá. Sentamos com ela e minha esposa começou:
- Meu bem, hoje aconteceu uma coisa muito triste...
- O que foi mãe?
- O Beethoven morreu – disparou ela, sem meias palavras.
A reação dela foi próxima do que eu esperava. Ela arregalou os olhinhos negros, e falou um “Sério?”, meio sem acreditar. Esticou o pescoço, e finalmente sentiu falta do aquário na última prateleira. Pensei que ela iria fazer um monte de perguntas, tentando entender o que acontecera, mas sua reação acabou sendo pior do que eu esperava. Caiu em um choro triste e magoado, abraçando inconsolável a mãe, que chorava junto com ela. Confesso que meus olhos marejaram também ao ver uma reação tão triste. Eu a havia subestimado, pensando que ela não ligaria muito para aquilo, e estava pensando apenas nas conseqüências pedagógicas do ocorrido, sem levar em conta os sentimentos que ela não transparecia, mas que com certeza estavam lá, escondidinhos. Juntei-me ao abraço.
Quando ela se acalmou um pouco, expliquei-lhe sobre o que acontecera, sobre como ela poderia lidar com a perda, etc. Nada parecia consolá-la, mas eu sabia que aquilo seria um aprendizado. Expliquei que era uma coisa natural, que infelizmente aconteceria com todo mundo. Com os vovô e a vovó, com o Negrão (nosso cachorro), com a B.J. (a gata), com meu gato, que morava com minha mãe...
- Com ele não! - interrompeu ela, com um sorriso regado de lágrimas. - Ele é imortal!
Rimos juntos. Meu gato vai fazer vinte anos em dezembro, e sem sinais de que está chegando sua hora. Ele já havia derrotado até mesmo um câncer na boca, e continuava forte. A piada aliviou um pouco o ambiente. Fui até a cozinha e trouxe para ela um prato de cookies de chocolate e um copo d'água, e ela começou a ficar mais calma. Dois cookies depois, veio o inevitável:
- Quero outro peixe!
Eu já esperava por aquilo, e sabia que ajudaria muito mais no aprendizado se negasse. Expliquei que comprar outro peixe era a maneira errada de superar a morte do Beethoven. Nada poderia substituí-lo. Se comprasse outro peixe, seria apenas outro peixe, e não o Beethoven que ela tanto amava. Exemplifiquei explicando que, quando eu morresse, ela não poderia simplesmente ir a uma Loja de Pais (Dad Shop?) e comprar um outro. Ela pensou em minha resposta por exatos cinco segundos, e depois disparou, com a segurança típica de uma menina de dez anos:
- Mas se você morrer, a mamãe pode casar de novo, e eu teria outro pai, ué!
É impressionante como a morte pode colocar as coisas sob uma nova perspectiva, e em seu devido lugar. Um acontecimento prosaico como a morte de um Beta foi o suficiente para eu perceber o meu exato lugar na hierarquia familiar, e o quanto eu era dispensável.
Só torço que, quando chegar minha hora, elas não me joguem pela privada. Pô, pelo menos um pouco de dignidade eu mereço!