469-LORETA E O SABONETE DAS ESTRELAS

Tempos mais do que difíceis, aqueles. A guerra terminara na Europa e na Ásia, mas seus efeitos persistiam e se faziam sentir até mesmo na pequena cidade de São Roque da Serra: carestia, racionamentos de alimentos e combustíveis, e outras dificuldades.

Para Luiz Ramos, mais conhecido como “seu” Luiz Barbeiro, o maior problema era a queda da freguesia.

— Esta invenção dos americanos, esta tal de gilete, está acabando com os barbeiros. — Queixava-se aos poucos clientes. — Só de corte de cabelo, não dá pra continuar.

Em casa, a situação era dramática. A família numerosa, com oito filhos, de idades entre dois e quatorze anos, por vezes passava alguma necessidade. A mulher, Candinha, se esforçava, lavando e passando roupa pra fora, isto é, para as senhoras ricas do centro. Mesmo assim, no fim do mês, sempre havia um “resto a pagar” na caderneta do empório do “seu” Jair, que passava para o mês seguinte.

Apesar das dificuldades financeiras, dona Candinha tentava manter os filhos bem alimentados, bem vestidos e — principalmente — bem limpos.

Fazia em casa o sabão de cinza, usado para lavar roupa. E para uso dos filhos, fazia um sabão mais suave, cuja receita só ela sabia. Organizada, dava um sabão para cada filho.

Havia, no banheiro, oito pequenas sacolas, dependuradas em um cabide de madeira, lado a lado, cada qual com o nome de menino ou menina. Em cada sacola, havia o essencial para a higiene pessoal: escova de dentes, pente, grampos de cabelos (nas das meninas) e um sabonete feito pela mãe.

Loreta tinha oito anos e era a mais vaidosa. Não gostava de usar o sabão caseiro.

— Não espuma direito. E tem um cheiro esquisito. — Reclamava todos os dias. — E ainda mais com essa cor de cenoura, que horrível! Ainda vou comprar um sabonete daqueles bonitos que tem na venda do “seu” Jair.

Já o irmão Lauro, o mais velho, detestava tomar banho. Tinha mil e uma artimanhas para evitar o banho, obrigatório dia sim, dia não. Trancava-se no banheiro, fazia barulho com a água, ou ficava lendo gibis, e saia como se tivesse cumprido a obrigação.

— Sei não — desconfiava Loreta. — Ele sai do banho com o cabelo sequinho...

A mãe conferia os sabões, examinando as sacolinhas do banheiro. Deu uma espinafrada em Lauro, pois o seu sabão não apresentava sinal de uso. Depois desta evidência, Lauro, sempre se superando, passou a trocar os sabões nas sacolinhas. Por ali, a mãe não o pegaria mais.

Isto tudo aborrecia Loreta, que sonhava com um sabonete só para ela. Principalmente a troca de sabonetes que Lauro fazia sem medo nem vergonha.

Ainda vou ter um sabonete só prá mim. — Sonhava Loreta.

A tia Rosinha, em cuja casa Loreta ia freqüentemente, usava um sabonete delicioso, perfumado.

— Qual é a marca desse sabonete? — Loreta perguntou à tia.

— Lever. O “sabonete das estrelas”.

— Que espuma cheirosa e gostosa.

— Diz que as estrelas de cinema só usam este sabonete.

Quando o dinheirinho para comprar sabonete (um segredo seu, não contara nem para as irmãs) foi se aproximando à quantia suficiente, Loreta foi ficando cada vez mais enjoada de usar o sabão feito pela mãe. Principalmente pelas vezes em que distraidamente usara o do irmão, cuja pratica de trocar persistia.

No dia que comprar um sabonete, nunca mais vou tomar banho com sabonete usado, sonhava acordada. A ansiedade aumentava, não via o dia de comprar o sabonete Lever — o das estrelas.

O segredo tinha de ser mantido, pois se alguém soubesse, corria o risco de ver seu plano ir por água abaixo. A mãe, as irmãs ou o irmão, provavelmente iriam lhe tomar o dinheiro, guardado a sete chaves e com muito sacrifício de picolés, mariolas, puxa-puxas e quebra-queixinhos.

O grande dia chegou. Completara os três cruzeiros, preço do sabonete. Era de manhã. Foi saindo de casa devagar, como quem não quer nada, as moedinhas apertadas na mão.

— “Seu” Jair, quero um sabonete daqueles ali – e apontou para a pequena vitrine, sobre o balcão, onde estavam expostos sabonetes, caixas de lápis de cor, cadernos, carretéis de linha e outras miudezas.

O comerciante, bonachão, pega o sabonete, embrulha-o em pequeno pedaço de papel, põe na mão da menina, que lhe paga com as moedas. Após conferir, o comerciante exclama:

— Bom sabonete! Cheiroso e macio.

E acrescenta, para enfatizar a boa escolha da menina, a frase que ouvia sempre na propaganda no rádio:

— Sabonete Lever: o “sabonete usado por nove entre dez estrelas do cinema”.

Loreta já pegara o pequeno embrulho e ia saindo. Ao ouvir a palavra usado, uma lembrança estalou em sua cabeça.

— USADO? — e jogou o pequeno embrulho sobre o balcão. — Não quero sabonete usado, quero novo. Novo, “seu” Jair, novo. Se for usado, não quero e não quero. — E saiu correndo da loja.

As lágrimas brotaram nos olhos. Dera-se conta de que perdera o dinheiro guardado com tanto esforço. Mas o pior era mesmo a decepção.

Então o sabonete suave, cheiroso, já vinha USADO!

“Seu” Jair não teve como deter a menina. Pegou o embrulho e, com toda a pachorra, levou o sabonete à barbearia do pai de Loreta, que ficava perto. Explicou-lhe o ocorrido.

— Ara, essa menina tá com besteira.— Respondeu o pai. — Faz o seguinte: já que ela não quer o sabonete Lever, embrulha um sabonete Lifebuoy (se dizia laifebói) que é da mesma cor do sabão feito pela Maria e, na hora do almoço eu entrego pra Loreta.

Depois do almoço, o pai discretamente entregou à filha o embrulho, com o sabonete.

— Tome. “Seu” Jair mandou lhe entregar. Você saiu sem pegar o sabonete nem o dinheiro de volta.

Loreta abriu o embrulho. Tirou o invólucro do sabonete.

— Mas é cor de laranja, que nem o que mamãe faz...

— Porém, é cheiroso. Sinta o perfume.

Um tanto quanto desconsolada, mas aliviada por não ter sido questionada pelo pai, correu para o banheiro e substituiu o sabão materno pelo novo sabonete.

Hoje de tarde vou tomar um banho com o sabonete novo. Muita espuma E cheiroso.

Não via a hora de tomar banho. Quando o relógio bateu cinco horas, correu ao banheiro, colocou água na banheira, tirou a roupa e procurou o sabonete na sua sacola.

Encontrou-o ainda úmido e já usado. Percebeu logo a desgraça.

Sentiu um desespero profundo em sua inocente alma:

Lauro...ele pegou meu sabonete novo. Desgraçado! Meu sabonete novo já foi USADO!

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 18 de dezembro de 2007

Conto # 469 da Série Milistórias –

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 27/10/2014
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