467-NASCIMENTO E MORTE- Autobiográfico

A madrugada estava fria. Uma chuva vasqueira insistia, as goteiras persistentes pingando num ritmo monótono e cansativo. No interior da casa modesta, no final da rua sem calçamento, entretanto, a movimentação é intensa. Todas luzes da casa estão acesas, ou seja, os quatro cômodos estão iluminados por pequenas lâmpadas mortiças. A parca claridade se perde entre os caibros e telhas do teto sem forro. A friagem entra pelas frestas.

— Seu Joaquim, ponha mais água pra esquentar.

O homem sai do quarto e se dirige para a cozinha.

Sobre a cama, uma mulher geme sem parar e, de vez em quanto, solta urros de dor. Estendida sobre os lençóis, as pernas aberta, a enorme barriga protuberante. Manchas de um líquido róseo nas roupas.

— A bolsa já arrebentou, dona Nélia. A criança não vai demorar. — Dona Tiana fala para a mulher deitada.

A parteira é competente. Se move com facilidade, apesar do corpanzil de mais de cem quilos. Cabelos cobertos cuidadosamente por um lenço vistoso, amarrado na nuca.

A mulher é eficiente. Mas o parto se complica.

Joaquim coloca diversas panelas, uma chaleira sobre o fogão de lenha. Ansioso, não sabe o que fazer. Ouve os gritos da mulher. Caminha entre a sala e a cozinha. Pela porta do quarto, entreaberta, observa a movimentação de dona Tiana.

Uma gaiola está sobre a mesa, onde é colocada a noite. O canário, assustado com a movimentação inusitada no recinto, salta entre os poleiros. Olhando para o passarinho, o olhar de Joaquim mira o vazio e as lembranças voltam.

As lembranças daquela trágica noite em que sua primeira mulher, há mais de dez anos, passara pelas mesmas dores, pelo mesmo trabalho...inutilmente. Naquela época, estava bem de vida, tinha até um médico assistindo a esposa. De nada adiantou. A mulher e a criança, uma menina, não sobreviveram ao amanhecer.

Imputara a culpa das mortes ao médico, do qual se tornara inimigo e até armara uma tocaia, a fim de vingar-se da dupla morte. Felizmente, o médico se mudara logo depois, e seu ódio amainara.

Há dois anos, casou-se novamente, com Nélia, mulher robusta, na casa dos trinta anos.

Quando a mulher ficou grávida, perdeu o emprego. Agora, não tem recursos para pagar o médico. Nem cogitara de arranjar um, confiara a mulher aos cuidados de dona Tiana, parteira de prática e fama na cidade.

Escutar os gritos e gemidos da mulher é algo insuportável. Dona Tiana chega, afobada.

— Me dê essa chaleira. E leve estas panelas para o quarto. Na afobação de pegar o cabo quente da chaleira, queima a mão.

— Ai. Que porcaria! Queimei a mão.

Esbarra na gaiola do canário, que cai da mesa. Joaquim não presta atenção, segue a parteira com as duas vasilhas até o quarto.

— Corre na vizinha, chama ela pra ajudar.

Joaquim sai. São quatro da madrugada. Esmurra a porta da casa ao lado.

— Quem é? — Uma voz de homem pergunta, sem abrir a porta.

— Joaquim. Preciso que Dona Filomena ajude a parteira. Tá difícil.

Ouve uma voz feminina:

— Já vou. Pode voltar, já tou lá agora mesmo.

Joaquim corre de volta à casa. Os gritos aumentam, mais agudos e mais constantes. Ao voltar à cozinha, vê a gaiola no chão. Quebrada. Pega o que resta da gaiola e coloca sobre a mesa. O canário não se mexe. Parece morto.

Chega dona Filomena, que corre em direção ao quarto.

Abafado, mal iluminado e cheirando a suor e sangue, assim está o quarto. Pelo chão, bacia, chaleira e caldeirões com água quente. Lençóis manchados de sangue. Sobre a cama, a mulher urra de dor.

— Já está nascendo! — Diz a parteira à recém-chegada. — Me ajuda aqui.

As duas conseguem aparar a criança.

— Mas...é um negrinho! — exclama dona Filomena.

— Não, minha filha. Tá assim pela dificuldade de nascer. — Com habilidade, corta o cordão umbilical, dando um nó. Uma palmadinha de leve no traseiro da criança, que emite um vagido.

— Vai, pega o nenê e põe ele na água quente. E depois, na fria. Cuidado pra não afogar.

Os gritos cessam. A mãe mergulha num torpor. A parteira age com segurança. Limpa a mulher deitada, atira os lençóis e toalhas para um canto escuro do quarto.

— Assim, assim. Já passou. É um menino. — Fala em voz suave, enquanto cobre a mãe, que parece nada escutar.

— Cuidado com o nenê. Assim, vai mudando, água quente e água fria. — determina à ajudante.

Sai do quarto e fala para o pai:

— Nasceu. É um menino. Ela tá bem. Mas espera um pouco antes de entrar no quarto.

Joaquim ouve aliviado. Recebe das mãos da parteira as panelas devolvidas. Toalhas e panos usados, empapados de sangue.

Os banhos no recém-nascido prosseguem por cerca de uma hora. Até que a cor natural, cor-de-rosa sedosa, revela-se em todo o corpinho.

— Estava quase asfixiado. Por pouco a gente não perde o nenê. — Comenta a parteira.

Voltando a cozinha, encontra Joaquim olhando para a gaiola.

— Tá tudo bem. O senhor pede entrar no quarto. — E antes que o homem faça qualquer movimento, diz:

— Me desculpe pela gaiola. O passarinho...?

— Morreu. Mas num faz mal. A vida é assim mesmo. Um morre, outro nasce...

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 7 de dezembro de 2007.

Conto # 467 da Série Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/10/2014
Código do texto: T5012407
Classificação de conteúdo: seguro