466-TEÓFILO DE ANGELIS-Autobiográfico

NOSSA amizade começou no terceiro ano do curso ginasial, nos idos de 1948. Já no primeiro dia de aula, Teófilo de Angelis marcou sua presença pela altura. Era o mais alto de todos e, soube mais tarde, o mais velho dos colegas da classe. Na fila dos alunos no pátio do ginásio antes da entrada das aulas, organizada pela altura, os menores na frente e os maiores atrás, ele ficou em último lugar.

A curiosidade inata dos colegas logo foi satisfeita em parte: viera transferido de um colégio de Goiânia e tinha 16 anos. Calado, de início, a primeira impressão passada foi de mistério. Moreno, cabelo muito liso e preto, comprido para os padrões da época, já usava calças compridas quando os outros, de treze ou quatorze anos, vestiam calças curtas. Nos meses seguintes, essa impressão transformou-se na constatação de que se tratava, realmente, de um colega cheio de segredos e reticências.

Não ficou claro se havia ingressado na escola tardiamente ou se fora reprovado diversas vezes no colégio de Goiânia. O fato é que, sobre certos assuntos, sabia mais do que os colegas da classe. Nas aulas de geografia do Brasil, mostrava um conhecimento muito avançado sobre a região do Pantanal e da Amazônia. Sua maneira franca de falar às vezes punha em dificuldade o Irmão Franz, não só em geografia como também em religião.

Gostava de ler e os livros foram os elos de nossa amizade. Passei a freqüentar sua casa. Morava com os tios, já que o pai continuava trabalhando em Goiás, em serviço que jamais vim saber qual seria. Nunca falou de sua mãe.

Freqüentando a casa de seus tios, por vezes conversava com eles, e principalmente com dona Francesca, que não concordava com a vida que levava seu irmão, pai de Teófilo.

— Domenico não emenda. Já passou da hora de assentar a cabeça. — Dizia ela. — Imagina, ficar zanzando por aquele fim de mundo, sem eira nem beira.

Através dos comentários da tia, uma genuína napolitana, que falava com a boca, as mãos e os braços, fui pescando raras informações que esclareciam alguma coisa sobre o mistério de Teófilo.

Parece que o pai viera da Itália fugindo de uma situação ligada a mafiosos de Nápoles. Embrenhara-se pelo sertão da Bahia, depois passou para Goiás, Mato Grosso e sul do Pará.

— Vive procurando pedras, diamantes, sei lá. — A tia não escondia sua reprovação. — Nunca achou nada. E acabou ficando com uma índia. Acho que ele comprou a bugra.

O mais foi imaginação de minha parte. Leitor inveterado de histórias de aventuras de Emilio Salgari, Julio Verne e Mayne Reid, vi em Teófilo um filho de italiano aventureiro com índia de tribo habitante das selvas da Amazônia. Claro que jamais comentei com ele o que escutara da tia.

NAS AULAS de religião, constituía um sério problema para o professor, Irmão Franz. Cheguei a pensar que ele era ex-seminarista, tal era o grau de contestação aos ensinamentos bitolados da religião católica, ministrados pelo Irmão. Suas perguntas eram francas e, muitas vezes, heréticas.

— Irmão, se Deus fez tudo o que existe no Mundo, então ele fez também o capeta?

Ou:

— Se só vão para o Céu quem acredita na Igreja Católica, pra onde vão as almas dos budistas, muçulmanos, dos índios e dos pagãos?

A resposta do Irmão vinha sempre sob a forma de reprimendas:

— Sente-se, Teófilo. Apesar do nome, tu pareces ser mais amigo é do demônio.

Uma questão, todavia, jamais foi respondida pelo Irmão Franz:

— Deus fez o homem de barro e a mulher foi feita de carne de Adão. É por isso que a mulher é gostosa?

O Irmão respondeu com uma ordem:

— Fora da classe. Está perturbando a aula.

Sorte de Teófilo de Angelis que a Religião não era disciplina reprobatória.

ANTÔNIO GOBBO

Belo Horizonte, 28 de novembro de 2007.

Conto # 466 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 26/10/2014
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