CONFISSÕES
Sempre quis saber como seria passar um tempo longe de casa, incomunicável. Descobri isso no ultimo mês. Passei as férias em uma colônia isolada no interior. Foi um programa barato e agradável. Conheci algumas pessoas que também gostam de um pouco de solidão. Mas chegar em casa em plena Segunda –feira, debaixo de um aguaceiro, não era meu ideal de boas vindas. Entrei encharcado e após me recompor, fui verificar os recados que a civilização deixara em minha secretaria eletrônica. Tirando os da família e os dos cobradores de sempre, só o recado do Arnaldo me chamou a atenção. "Cleiton , a Alice foi embora". Aquilo me abalou, pois conhecia os dois desde o tempo da faculdade, e sem pestanejar liguei para ele. Enquanto ouvia o telefone chamar, rememorei o que era comentário corrente entre os amigos mais íntimos. "Ela logo vai larga-lo". Só não sabíamos quando seria isso , alguns apostaram em um ano, outros mais otimistas em três; mas tudo havia durado, até o momento, oito anos e meio. E eu precisava realmente saber como acontecera.
No quarto toque ele atendeu, sua voz estava um pouco embargada, e pediu para que eu fosse até a sua casa. Após desligar chamei um taxi e me embrenhei no meio do caos criado pela chuva e dentro do trânsito intransitável desta bendita cidade. Levei algumas horas para chegar ao seu apartamento. Quando subi ele abriu a porta e o que vi foi realmente espantoso, aquilo não era um homem, ele estava irreconhecível era apenas o rascunho de um frangalho, a única reação que teve ao me ver foi a de me puxar e me abraçar, ficamos assim por alguns minutos sob o batente da porta. Acho que se alguém tivesse passado pelo corredor pensaria que era o reencontro de dois amantes que há muito não se viam. finalmente entramos e perguntei.
"A quanto tempo ela foi embora?"
"Faz uns doze dias, mas parece que são anos- seu rosto ficava cada vez mais transfigurado pela dor. - só que eu te chamei aqui por outro motivo, você era tão amigo meu quanto dela, por isso acho que merece partilhar dessa confissão."
Ele me estendeu um envelope verde. Fiquei meio embaraçado. Fomos sempre unidos, eu, ele e a Alice, porém, nenhum dos dois me confiara algo de sua particularidade. Abri o envelope depois dele insistir muito e encontrei algumas folhas manuscritas naquela letra arredondada de mulher, que logo reconheci como dela. Olhei novamente para ele pedindo permissão para começar a leitura.
"Recebi dois dias depois que ela partiu." Essa foi a deixa para que eu começasse a leitura.
"Naldo querido"
Se você está lendo isso é porque simplesmente eu fui embora. Sei que deve estar magoado, triste e até com raiva, mas nós dois sabíamos que um dia isso iria ocorrer. Não poderia durar tanto, estávamos lutando contra algo que cedo ou tarde havia de nos separar. Pois esse dia chegou e eu não poderia deixar de lhe contar o que passou pela minha cabeça esses anos todos que estive ao seu lado, assim como confissões a serrem feitas. Logo de inicio confesso que esta carta foi escrita dezenas de vezes e é a mesma quantidade de vezes que nosso fim parecia eminente. Espantado, pois não fique, porque essa é a menor das confissões, mas para não adiantar muito , vamos voltar ao nosso inicio e relembrar como e onde nasceu nosso fim.
Foi no segundo ano da faculdade que te conheci, eu cursava fisioterapia e você história, nos trombamos ao acaso na biblioteca do campus. Eu procurava um livro para matar o tempo e como não encontrei peguei outro e fui me sentar na mesa de estudo, chegando lá notei que o livro que procurava estava com um rapaz, me aproximei dele e perguntei se ele tinha pego o livro fazia tempo, o que me respondeu foi que fazia pouco, pois havia procurado um outro livro e como não achara pegou aquele ao acaso, quando ele me falou o nome do livro eu notei que era o que tinha em minhas mãos, mostrei a ele que logo propôs uma troca e nos apresentamos.
Lembra Naldo, foi assim que nos conhecemos, uma pequena troca fez com que tropeçássemos um no outro e depois daquele dia sempre te encontrava na mesma mesa e travamos nossa amizade. na época eu namorava um carinha que conheci logo nos primeiros dias do curso, mas estava passando por algumas dificuldades nessa relação e você tentava amenizar a situação aconselhando a ambos, porém não houve solução amigável e sai daquele relacionamento muito machucada. Mas você esteve ali para me consolar e mostrou o quanto de amizade desprendida existia entre nós.
Bem, a partir dali começamos a andar mais juntos, íamos ao cinema, festinhas das fraternidades, exposições e qualquer coisa que um de nós conhecíamos e quiséssemos mostrar para o outro. Era inevitável que desse convívio não surgisse algo mais. Me lembro como se fosse hoje, a iniciativa de se declarar partiu de você, mas a ação foi minha, tudo bem que te enrolei por uma semana só para dar um certo charme, mas foi legal, estávamos unidos por coisas que não eram palpáveis aos outros. Muitos diziam que éramos iguais demais para ficarmos juntos e eu temia que isso fosse verdade, só que pelo visto você temia mais ainda, porque mesmo depois de algum tempo o seu semblante as vezes deixava escapar sua insegurança.
No inicio eu estava feliz e radiante com a idéia de estarmos juntos, fazíamos o que queríamos, nos entregávamos por inteiro um para o outro. tudo o que queria encontrava com você , mas sempre me batia aquela frase. "nada que é bom dura para sempre". Você me confessava com extrema sinceridade o que sentia por mim e eu sabia, que por receio, eu não conseguia passar essa certeza para você.
Acho que ficou pior quando a bomba foi armada. Você deve se lembrar que eu estava tratando uma pequena infecção que não curava por nada, mas fui levando até que não deu mais e o médico pediu exames mais detalhados. Naldo no dia você estava comigo em casa quando eu disse que iria ver o resultado dos exames antes do médico, você riu e disse que eu não entenderia nada, mas mesmo assim abri os envelopes. Logo de cara notei que algo ia mal, os padrões estavam estranhamente alterados e quando passei por um deles soltei um grito estridente, me joguei para longe de você e me agachei em um canto do quarto e comecei a soluçar e a chorar convulsivamente. Você, sem entender, pegou o exame e começou a olha-lo e vi quando seus olhos pararam na altura do teste onde li em seu semblante o que lera segundos antes:
HIV: positivo.
Depois de alguns instantes nosso conto de fadas explodiu, começamos a colocar para fora todos os sentimentos corruptos existentes, passamos a desconfiar um do outro, fizemos cenas de ciúmes, nos acusamos de prováveis infidelidades e nos ofendemos mutuamente. Cheguei a dizer que você havia acabado com minha vida, aquilo foi a gota d'água, pois logo de cara você me olhou com ar sarcástico e disse que talvez eu tivesse acabado com a sua. Você saiu de casa decidido a tirar isso a limpo, marcou uma consulta com um médico, explicou a ele o ocorrido, fez um exame e decidiu que abriríamos juntos, e certamente independente do resultado nossa vida já tinha virado um inferno.
Foi uma semana longa, evitávamos nos ver, por que com certeza não haveria paz entre nós, e cada dia que passava eu te odiava mais. Acho que isso acontecia contigo também, era ai que a profecia do inicio tomava mais força: "A igualdade deles ainda irá separa-los". O que eu sentia sabia com toda certeza que era análogo aos seus sentimentos.
Porém, naquela Terça-feira, quando você iria levar o exame para que visse, o meu ódio por você havia se extinto, a raiva, os sentimentos nocivos tinham desaparecido. eu simplesmente estava me odiando me sentido o pior da raça humana. Você chegou com o cenho alterado me encarando com ódio e dúvida, pois deve ter notado minha transformação. No instante que tentou abrir a boca para dizer provavelmente: "Tá aqui a porcaria do exame." Eu peguei seu braço com carinho e fiz com que se sentasse e prometesse me ouvir. Comecei lhe falando que certas escolhas que fazemos na vida são acertadas e caminhamos para próxima a fim de continuarmos vivendo e outras se mostram errôneas e precisamos supera-las para conseguirmos evoluir, porém existem aquelas que nos perseguem até mesmo quando estão enterradas. Você me olhou com aquela cara de ponto de interrogação e depois de muito enrolar lhe contei que aquele namorado que tive antes, havia morrido em decorrência de uma infecção pulmonar. Seu semblante mudou naquele instante. E ele só não conseguia se curar pois era portador de HIV a muito tempo, isso quer dizer que na minha época ele já estava infectado.
A reação que você teve foi estranha, o envelope em suas mãos se tornou o centro do seu universo, e eu disse que você estava certo, independente do resultado, nossa vida realmente viraria um inferno, só que seria eu o demônio nesta historia. Você rasgou o envelope com calma, abriu o exame e estancou por um minuto, aquele tempo relativamente curto pareceu uma eternidade e você logo estendeu o papel para mim. O medo me dominava, eu receava pega-lo pois estava apavorada com o que veria, mas como por intervenção divina, pude perceber o que estava escrito.
HIV: negativo.
Fiquei eufórica, alegre e feliz, mas ao mesmo tempo notei que meu mundo acabara diante do seu rosto inquisidor, você me queimou na fogueira de sua alma, naquele instante o silêncio se tornou insuportável e finalmente falei que você deveria seguir sua vida, pois a minha já tinha sido destruída por minha imprudente inconseqüência, pedi que você saísse e deixasse a chave de meu apartamento na portaria. Você passou pela porta e logo depois o zelador interfonou me avisando que a chave havia sido depositada lá. Me recolhi no quarto e chorei, não pelo que acontecia comigo, mas pelo que acabava de perder, perdi o amigo, o companheiro, o piadista que me arrancava gargalhadas e acima de tudo a pessoa que procurava. Fiquei assim por algumas horas, depois me levantei e fui até a sacada observar o mar de luzes que pontilhavam a cidade, recordando quando você me abraçava por trás e ficava admirando este cenário. Ah! como você adorava aquilo, nisso começou a chover e senti os pingos caírem sobre mim, como se quisessem limpar meu espirito. Foi quando ouvi a porta e ao me virar você estava já dentro da sala todo encharcado, se aproximou e disse. "Eu te disse uma vez que havia procurado por você durante uma vida toda, e não deixarei escapar agora que te encontrei, eu quero passar o resto da vida contigo, nem que seja seis meses ou sessenta anos". você me abraçou e me beijou.
Agora aqui vai uma confissão. Instantes antes de você chegar, eu estava disposta a acabar com tudo. E que melhor cenário do que uma noite chuvosa, você não sabe, mas salvou a minha vida desgraçada pela primeira vez. Depois desse dia você se mudou definitivamente para meu apartamento e começou a cuidar de mim. Vivíamos como se fossemos casados, apesar de sempre dizer que tínhamos ojeriza a essa entidade. Você me obrigava a seguir o tratamento e as dietas a risca, me incentivou a continuar a viver e a conviver com o mundo normalmente. Fez com que concluísse a faculdade, você se formou e logo depois batalhou trabalho após trabalho até conseguir um que satisfizesse nossas necessidades. Comprou uma casa melhor para nós e sempre me satisfez, até mesmo na cama, tomando todos os cuidados, sempre dizia do que adiantava tentar me fazer feliz se não fosse em todos os sentidos.
Isso me causava uma certa angustia, por que você era obrigado a fazer exames periodicamente, e a cada resultado negativo eu me alegrava e aventava ainda mais a idéia de partir e te deixar viver sem ter um fardo para se preocupar, porém, sempre adiava essa decisão, principalmente quando você me surpreendia com uma declaração inusitada de seu amor, que insistia em dizer que ainda era pouco para demonstrar o que realmente sentia. Eu sei que retribui a suas demonstrações do meu jeito e sei também que isso nunca lhe deu certeza dos meus sentimentos, mas mesmo me abrindo contigo, a mania que sempre tive de me proteger, impedia de encontrar uma maneira sincera de lhe mostrar os sentimento que tinha por ti. Mas ainda assim, não queria que você perdesse sua vida por uma condenada, você nunca disse ou insinuou, mas eu sabia que as vezes me condenava em seu intimo pelo meu passado, passado esse que fez vivermos encarcerados em cuidados e prevenções, você deve ter me perdoado varias vezes, mas existem aqueles momentos onde o espirito, por mais puro e justo que seja, fraqueja e deixa a raiva nos consumir, eu percebia isso quando você saia de manhã de cara amarrada e voltava a tarde trazendo um mimo pra mim, como que pedindo desculpas por ter tido tais pensamentos.
E como isso aqui é um maneira de confessar meus pecados, aqui vai outra, sei que será doloroso de saber, mas você precisa. O que você fez e faz por mim é maravilhoso e sublime, mas se situação fosse inversa eu não teria a força que tem para fazer o mesmo. Nesse momento o ódio deve estar te consumindo, mas se te conheço bem, logo depois deve vir seu eterno perdão e isso é demais para mim. E agora eu decidi partir enquanto tenho seu amor, seu carinho e sua dedicação, para que isso nunca se torne pena ou dó, pois seria insuportável ter-te ao meu lado por tais sentimentos.
Te amo, mesmo nunca tendo demonstrado a contento, e quero que você viva o resto de sua vida por você e não por mim.
Adeus.
Da tua eterna Alice, que encontrou, com você, o seu país das maravilhas."
Ao terminar de ler a carta me voltei para o Arnaldo e perguntei:
"Quando foi?"
"Ela juntou algumas coisas e foi para casa da Ivone, só que no caminho ela pegou uma chuva forte, adquiriu uma gripe, que logo virou uma pneumonia e não agüentou mais que uma semana." Ele falava aquilo entre soluços e espasmos e terminou:
"Eu a enterrei em um cemitério aqui próximo.
Para resumir a história. Eu peguei o coitado e o enviei para aquela colônia isolada para tentar se recuperar, e alguns dias depois fui visitar o túmulo da Alice, depositei algumaS tulipas sob a lapide onde se lia:
"Alice, sonho de um homem personificado em mulher."
E junto deixei o último exame do Arnaldo que peguei no laboratório:
HIV: positivo.
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