"E o que importa essa dor do feito faca no peito?"

Ela sempre encontrava um pouco de dor enquanto buscava o prazer. Isso não seria problema, não fosse o fato d’ela estar incessantemente em busca do prazer. Sentada ao lado da janela e olhando a paisagem seca, mas nunca morta, pelo vidro escuro do ônibus, sentia um cansaço fundo da rotina “alternada”. Queria ser um copo raso, mas só conseguia, mais e mais, se afogar no mar revolto de seus sentimentos e sentimentalidades. Ela sabe que ele mente mais para si do que para ela, mesmo assim não deixa de lastimar por ele. Dito assim até parece que seu único assunto é ele, mas como parecer diferente se quando se predispõe a mostrar outros lados seus, ele não pode, não tem tempo, não tem tato. Aquilo a incomoda, revira por dentro, provoca fissuras profundas, afinal, ainda não aprendeu a não se importar. Bem gostaria, mas não consegue. Mais de um milhão de km rodados depois tinha poucas ou nenhuma certeza, uma cabeça e um coração enchentes para completar sua divina comédia humana. Depois de quase trinta anos vividos seus órgãos transbordavam por pouco. Algumas vezes jorravam tanto que veias e vasos se rompiam. Pressionava tudo rapidamente com as mãos para que nada se perdesse e tudo voltasse para seus devidos lugares. Tinha sangue entre as unhas e debaixo delas. Sentia, enfim, que suas mãos carregavam o peso de crimes que nem chegara a cometer. Carregava um espinho entranhado debaixo da sola do calcanhar. Tinha também uma necessidade incontrolável de um cigarro. Precisava ocupar as mãos e desanuviar as ideias com nuvens densas de fumaça. Precisava aplacar a fúria e o fogo interiores que a dominavam. Reconhecia em si uma sede de palavras que fossem capazes de fazer o que ela não era naquele momento: dizer como se sentia naqueles últimos anos em que tantas mudanças vinham acontecendo. Tudo era necessidade para aquela alma confusa, até mesmo o amor.