INVEJOSO
Gustavo do Carmo
Olhou a foto de sua ex-colega da faculdade de jornalismo e ex-amor platônico no jornal. Ela aparecia sorridente, radiante e... grávida, ao lado do marido milionário, jovem empresário do ramo do entretenimento. A velha conhecida aparecia na coluna social mais importante do mais importante jornal do país.
Furioso, Ivan amassou o jornal, transformando-o em uma bola disforme de papel sujo. Não suportava ver os antigos conhecidos por cima, ricos e famosos, enquanto ele era sempre cobrado pelo pai para tomar um rumo na vida.
Não que Ivan não quisesse nada com a vida. Ele não queria viver eternamente dependendo do dinheiro do pai. Mas era um rapaz tímido, sem sorte e sem contatos. Contatos para colocá-lo no mercado de jornalismo ou das artes, onde sonha em fazer carreira.
Ivan apenas sonhava. Enquanto os outros realizavam. Cheios de amigos influentes e moradores da zona sul, os antigos colegas faziam o que gostavam. E eram atendidos em seus desejos. Eram sempre procurados. E facilmente conseguiam o que queriam. Restava-lhes apenas desenvolver seus talentos.
Já Ivan era esquecido pelos que se diziam amigos e tinha que procurar desconhecidos para mendigar uma oportunidade. Tinha que procurar um emprego humilde. Conviver com pessoas humildes. E frequentar lugares humildes e ermos. Com muitos habitantes de caráter duvidoso.
Ivan só tinha medo, insegurança e ansiedade. Quando tinha oportunidade, as deixava escapar nas mãos. Paralisava. E fracassava. Depois era apontado como o próprio inimigo de si mesmo.
Com tantos fracassos acumulados e desorientado, Ivan se entregava fácil. Deixou de lutar por oportunidades desconhecidas e ficou em casa, esperando pelas respostas dos poucos contatos que fazia. Algumas até prometiam oportunidade, mas ficavam só na promessa. Outros pareciam mudar de ideia com qualquer comentário que Ivan fazia sem querer.
Estagnado, deprimido e preguiçoso Ivan passou a ser acusado pelo pai de fazer corpo mole e esperar a oportunidade cair do céu. A irmã mais velha, diretora de uma estatal e bem-sucedida, o acusava de se fazer de vítima. A mãe só rezava e contradizia na hora de defender o filho.
Das doze horas do dia em que Ivan ficava no computador, seis eram dedicadas ao lazer, quatro aos seus blogs de algumas visitas, mas pouco retorno pessoal e financeiro e uma hora com contatos atrás de oportunidades que nunca vinham.
Como toda pessoa de pouca sorte, Ivan era sempre flagrado pelo pai nas horas em que estava de bobeira, como no momento em que acabava de amassar o jornal depois de ver a ex-colega.
— Iiiiih! Qual é o chilique agora? Perguntou mal-humorado o pai.
— Nada, pai! Nada. Respondeu, impaciente, Ivan.
— Mas eu sei o que é! Tá reclamando da vida, né? Não fez o que eu falei.
Não se anima a se dedicar aos estudos para um concurso público, não quer trabalhar lá na loja comigo. Agora fica aí vadiando. A vida tá passando, meu filho! Dá um jeito logo senão você não me terá mais.
— Ah, pai! Não enche! Tô cansado de ouvir a mesma coisa.
Reagiu Ivan,invocado, deixando a sala onde estava com o jornal e indo para o seu quarto. Voltou e pegou a bola de jornal e a levou com os seus trinta e dois anos para o quarto, onde bateu a porta.
Desfez a bola de papel e voltou a observar a foto da ex-colega sorridente, radiante e grávida. A cada minuto que passava, seu ódio invejoso aumentava.
—Tomara que perca o bebê, seja abandonada pelo marido e fique pobre! Praguejou.
Rasgou definitivamente o jornal e ligou a televisão do seu quarto. Sintonizava um canal de notícias em que aparecia o cara que estava sempre ao seu lado na faculdade, fazendo um comentário econômico em um estúdio. Localizado em São Paulo.
Ivan odiava São Paulo. Tinha ciúme do estado vizinho ter mais recursos e atrair mais atenção da mídia e dos investimentos do país. Ver o cara que dizia ser seu amigo, mas que só o procurava no seu aniversário foi a gota d’água. A televisão foi jogada longe.
Ivan pulou na cama aos prantos e aos gritos de QUE ÓDIO! QUE ÓDIO! QUE ÓDIO! O estouro da televisão que caiu perto da janela chamou a atenção de sua bondosa mãe, que tentou consolar o filho:
— O que foi, meu filho?
— Ai, mãe! Todos os meus colegas da faculdade estão se dando bem. Ganhando dinheiro. Aparecendo na mídia. Viajando. Casando. Tendo filhos. Só eu que estou nessa merda de vida, merda de bairro, imaturo, dependendo do meu pai, sendo cobrado, sendo humilhado.
— Ah, meu filho! Eles se esforçaram, correram atrás.
— E eu? Não me esforcei? Não estudei junto com eles? Não publiquei um livro?
— Mas você não correu atrás, meu filho!
— Tá bom, mãe. Eu estou sempre errado, então. E eles estão sempre certos. Eles não tiveram pai e mãe que não conhecem ninguém, editora que os sacanearam, nunca moraram no subúrbio. Pelo contrário: tiveram vários amigos, sempre moraram na zona sul, eram de família rica, todo mundo valoriza eles. Não quero discutir mais isso. Eu vou falar com a minha psicóloga que me põe pra cima, melhor do que você.
O pai entrou no quarto aos berros:
— Quebrou a televisão, né? Vai ficar sem ela, pois eu não vou comprar outra, hein!
— Não enche, pai!
***
Ivan se arrumou para sair e foi para o Largo do Machado, onde ficava o consultório de sua psicóloga, com quem havia marcado horas antes das discussões com os pais. Lá, desabafou todos os seus problemas e angústias. Reclamou dos antigos colegas, mais bem-sucedidos do que ele. E confessou os pensamentos maldosos que tinha para eles.
A profissional não o acusou de não correr atrás dos seus sonhos. Mas pediu:
— Não pense assim. Não deseje isso para eles. Isso pode se voltar contra você.
— Mas eu não aguento mais ver os outros se dando bem, enquanto comigo dá tudo errado. Olha aqui — ele mostra um outro jornal, diferente do que rasgou, para a analista — esse cara que assinou essa matéria estudou comigo. Não queria nada com a faculdade. Vivia no bar da esquina tomando chope e fazendo brincadeiras de mau gosto comigo. Isso tudo do primeiro período até a formatura. Agora assina a matéria de primeira página de jornal? O que foi que eu fiz para merecer isso?
— Calma, você não fez nada de errado. Não se culpe. Teve paciência e está esperando. Você ainda vai conseguir colher o que está plantando.
Mas não deseje mal aos seus colegas. Quando desejar alguma oportunidade pense: “Eu vou conseguir. Eu vou vencer.” Pense positivo, para te trazer energias positivas. Se pensar negativo para os seus colegas a energia negativa que sobrar voltará contra você.
***
Ivan voltou pra casa pensando na sugestão da psicóloga. Parecia aceitá-la. Olhou o jornal com a matéria assinada pelo seu desafeto, sorriu bondosamente e disse sozinho, no ônibus, ignorando o senhor que o encarava espantado:
— Eu quero ver você crescendo ainda mais.
Em casa, de madrugada, deitado no sofá da sala, reviu na TV a cabo o programa com o seu ex-amigo em São Paulo. Desta vez, não quebrou a televisão. E nem mudou de canal, como costuma fazer quando vê suas jornalistas preferidas transferidas para São Paulo ou quando não gosta de uma notícia. Encarou o seu velho amigo e lhe disse:
— Você ainda vai apresentar esse telejornal, amigo!
Dormiu. Foi acordado carinhosamente pelo pai no sofá para terminar de dormir na cama. Acordou para mais um dia de cobranças paternas e ostentações dos ex-amigos. Assistiu ao noticiário da TV a cabo, leu o jornal, tomou café da manhã e foi trabalhar no computador. Primeiro, leu as notícias do dia e depois pesquisou informações para escrever um texto para o seu blog. Em seguida, escreveu alguns contos.
Antes de desligar o notebook para ir almoçar foi chamado por um amigo que conheceu pela internet.
Beltrano diz: Acho que aquela proposta para trabalhar em São Paulo vai sair.
Ivan diz: Boa sorte. Vou almoçar.
Mais uma vez adiou seu almoço para atender uma amiga, que não fazia contato há meses, que lhe mandou um link para uma longa matéria de jornal elogiando o filme baseado no conto dela. Um conto que Ivan conheceu em primeira mão, quando foi praticamente obrigado por ela a revisar.
Mais tarde ficou sabendo que ela também estava se lançando na carreira musical, num grupo de pop rock brasileiro com sete homens, sendo ela a vocalista. Ivan ignorou e desligou o computador. Não praguejou, mas também não abençoou a obra. Foi almoçar.
***
Dois meses depois, a rotina de Ivan era a mesma. Até que ele leu no jornal uma notícia: sua ex-colega de faculdade sorridente, radiante e grávida havia perdido o bebê durante uma briga, por ciúmes, com o marido rico.
Ele a flagrou com outro homem na cama. Já estava desconfiado de sua infidelidade, quando, com a ajuda de um detetive, descobriu o apartamento onde ela se encontrava com o amante. Possesso, sacou o seu canivete suíço e desferiu um golpe na barriga da moça radiante que foi salva pelo bebê morto. Ficou uma semana na U.T.I. , mas saiu sem seqüelas, triste, pobre e estéril.
Não é uma notícia que se deve comemorar. E Ivan não comemorou. Mas sentiu uma ponta... de satisfação lá dentro. No mesmo dia, ficou sabendo que o seu ex-colega foi demitido do programa de economia que apresentava em São Paulo. Voltou ao Rio para se tratar do alcoolismo. Descobriu a informação por uma rede social.
Uma nota ao lado da notícia policial sobre o ex-amor platônico, informava a prisão de um jornalista por tráfico de drogas. Precisou pesquisar na rede social o nome do tal jornalista detido: era o que escrevia no tablóide esportivo, o mesmo que o humilhava na faculdade. Aquele repórter que Ivan mostrou para a psicóloga.
Ligou o computador. Releu a notícia da briga da ex-colega ex-grávida e também ficou sabendo que o filme baseado no conto de sua ex-amiga saiu de cartaz por falta de bilheteria, além do grande prejuízo que quebrou a produtora. A decepção da moça foi tão grande que ela entrou em depressão e largou o grupo, sendo substituída por uma cantora profissional mais talentosa do que ela.
Na mesma hora, seu amigo virtual o chamou pelo chat:
Beltrano diz: Aquele emprego em São Paulo subiu no telhado.
Ivan diz: Que pena.