449-CARIDADE ORGANIZADA-Autobiográfico
O Prado é um pacato bairro de Belo Horizonte, espremido entre as avenidas Amazonas, ao sul, Francisco Sá, a oeste, Silva Lobo a leste e Via Leste-Oeste ao norte. Bairro antigo, próximo ao centro da cidade, aonde se pode ir a pé, pois a distância é de apenas quatro quilômetros. Bem atendido por conduções coletivas: pela Amazonas passa dezenas de ônibus e ao lado da Via Leste-Oeste localiza-se a estação do metrô do Calafate.
Sendo um bairro de gente idosa e de aposentados, residentes em casas, é freqüentado por muitos pedidores de esmolas, mendigos alguns, vadios outros.
A facilidade de transportes gerou uma situação interessante. Uma grande quantidade de hansenianos, residentes da Colônia Santa Izabel, situada em município próximo à capital, percorriam as ruas do bairro nas manhãs de sábado, pedindo auxílio para comprar remédios, alimentos e outros fins cujo mérito jamais julguei. Eles chegavam em um ônibus fretado, que os trazia bem de manhãzinha e os recolhia por volta da uma da tarde, após a peregrinação pelas ruas do bairro.
Como eram quase meia centena de pedintes, se organizavam em grupos de cinco ou seis para cada rua, naturalmente a fim de obterem melhor resultado da mendicância. A partir das sete e meia, era aquela peregrinação à porta das casas. Por minha casa passavam seis ou sete pedintes, aos quais dava um auxílio no valor de um real para cada.
Durante muito tempo dei a esmola desta forma. Até que um dia, chateado de atender a tantos esmoleres, alguns dos quais tocavam a campainha antes mesmo de me levantar, pensei em “organizar” a maneira de conceder a esmola.
Sabia o nome de todos, pois, além da doação, conversava com eles e ouvia suas queixas. Havia um, que me parecia mais atilado e, portanto, capaz de entender meu plano, chamado Rafael. A ele fiz a seguinte proposta:
— Vou lhe dar hoje cinco reais, mas vou lhe pedir que só passe de novo na minha casa daqui a um mês.Como lhe dou um real por semana, daqui pra frente vou lhe dar cinco por mês, de uma só vez. Você ganha mais e bate na minha porta só uma vez por mês..
Os olhos do homem brilharam ao ver a nota que lhe entreguei.
— Deus lhe pague, doutor.
— Mas não fala nada pra ninguém, tá bom? — Recomendei, a fim de que eu próprio fizesse a proposta aos demais. Mesmo assim, nem a todos, pois alguns não tinham sequer compreensão para entender o plano, apesar de muito simples.
Pois qual não foi minha surpresa quando, no sábado seguinte, ao atender Maneco, o primeiro pedinte da turma de hansenianos, ainda bem cedo, antes das oito, ele não fez o pedido de costume, mas já foi falando assim:
— Bom dia, doutor. É verdade que o senhor vai dar uma mensalidade pra nóis, da colônia?
Mais do que surpreso, fiquei aborrecido com Rafael, por ter contado aos amigos e de forma adulterada, o meu plano.
— Não, não é bem assim, não. — Respondi e, sem dar explicações, dei a moeda de um real, como era costume.
E o pior foi que Rafael bateu naquele sábado, e com o maior caradurismo, foi me pedindo uma ajuda, explicando que estava com uma necessidade qualquer, que nem me dei o trabalho ouvir.
— Olha, Rafael, não vou lhe dar hoje porque já lhe dei cinco reais na semana passada, lembra-se? E também não vou lhe dar mais esmolas, a partir de hoje. Nem a você nem aos seus amigos, aos quais você falou que estou dando “mensalidade”. Já que você é bom em dar notícias, diga isso a eles, também. Explica pra eles, bem explicado, tá bom?
— Mas, doutor...
— Não tem “mas” nem meio “mas”. E pra seu governo, não sou doutor não.
Com o passar do tempo, os hansenianos deixaram de bater à minha porta. E, finalmente, deixaram de freqüentar o bairro, talvez porque todos nós, os moradores do Prado, tenhamos nos cansado deles.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 3 de setembro de 2007
Conto # 449 da Série Milistórias