Do outro lado das janelas
As vezes algumas coisas se repetem ou simplesmente mudam de lugar. No seu devido espaço temporal. Prefiro me ater aos momentos, aproveitando que os mesmos são fragmentados e únicos.
Os pesados dias asfaltam nossos campos, embrutecem os olhos, deixando a aridez formalizar as pautas de nossos dias. E nesse compasso.Esquecemos de olhar a vista que brota, os contornos. Esquecemos de nós. E nos perdemos em meio aos nós.
De quantos cerzidos precisamos para continuar a estrada? Permanecer meninos nas esquinas que nos afrontam. Ah, vida! Essa selva de concreto me assusta.
Era inicio de janeiro. As perspectivas anunciavam a zelo. O gosto fino da esperança ressoava como se ainda buscasse aconchego definitivo em nosso amago.
As manhãs tinham um colorido diferente naquele espaço suspenso. Acredito que as nuances coloridas, vistas pelas janelas, enchiam de encanto os olhos da alma. Era possível sentir a brisa tocar o vidro. E na magia, sentir seu beijo na face.
Permanecer ali, talvez fosse um resgate das pequenas coisas. O tempo escorria. E as janelas emolduradas nos ofereciam a vida pulsante lá fora.
Entre os galhos, a sombra da sorte. Do outro lado da mesma janela. Um casal de pombos distribuíam versos. Símbolos vivos da paz. Aconchegada sobre o ninho, Celestina. Prefiro assim chama-la.Esperava tranquila uma nova vida. Talvez intrigada com tantos olhares em sua direção. Ou, quem sabe, lisonjeada, com os flashes disparados, buscando sua melhor pose.
Que bom quando temos a compreensão de que nada nos possui. No fundo de tudo ou de todas as coisas que nos cercam, podemos de alguma sorte, merecer os ensinamentos. Desembrulhando a cada manhã cenas que nos enterneça o caminho.
Celestina, em seu trono de galhos, permanecia. Ajuizada com seus cuidados maternais. Revezava suas estadas no ninho com Ferdinando. Acreditamos que fosse seu eterno amor. Ou seu amante ocasional. Não tenho ideia da dimensão de sua relação a essas alturas da história.
Nas manhãs que se seguiam as janelas de vidro se transformaram em telas dimensionais, daquelas de 52 polegadas, onde assistimos o National Geografic. Era um alento aos olhos observar a pequena Celestina em seus cuidados maternais. Ajeitava-se no ninho, exibindo charme e carinho, não poupava esforços, visto que suas noites eram sempre longas.
Engraçado, quando permitimos voltar a essas pequenas-grandes coisas.Momentos ricos de significados que nos mostra a grandiosidade da vida, pedindo passagem. Mostrando com clareza a dimensão de tudo a nossa volta.Tudo em seu devido lugar. Em meio a desordem que fazemos de nossos dias. Não paramos para vislumbrar a fumaça perfumada que navega sobre a xícara de um simples cafezinho. A leveza com que desce a chuva em tardes de sol.
Estamos na era dos chips e comandos.Uma rotina apática que nos afasta da realidade. Desvia-nos a atenção, de toda a simplicidade que pulsa de forma constante.
Creio nas Celestinas e Ferdinandos. Filhos, filhas, mães, esposos, caminhos diversos, nas entrelinhas do existir. Autores e atores de suas próprias histórias. Afinal o que são pessoas?Já não me importam teus olhos. Quero acreditar na essência pura que escorre deles. Vivenciar com alegria o frescor das manhãs. Sentir o cheiro de histórias felizes. Abrir as janelas e colher o sol de um novo tempo.
Celestina continua ali. Ferdinando de voos em voos, sempre retorna às 9 horas. Acalenta sua amada dividindo com ela a mesma espera. Lá embaixo. Em passos acelerados, escondidos sobre mascaras disformes, as pessoas seguem. Alheias a tudo que as cercam.
Não é por acaso que estamos nesse circulo. Falta-nos o gosto pelas janelas. Abri-las, reverencia-las, dar proposito as suas cenas. Distribuir com exatidão as sementes que colhemos.
Romper a casca, aprender novos voos. Aceitar as situações que se movem e fazer das mesmas, não apenas destino. Isso é literatura. Escrever de verdade, páginas que façam valer a impressão.
Ainda estamos do outro lado das janelas. Expectadores alheios por dias apenas. Celestina, Ferdinando e sua prole, logo deixarão o ninho. E como nós, irão abraçar novas estradas, na esperança de encontrar outras janelas.