A Aldeia
Sinto que, nesta aridez de hoje, nascerão os cardos da próxima primavera. Sei que haverá também papoilas e ervas e, ainda, as pedras de todo o ano. È nelas que cresce, esperançoso , um musgo breve, sem tempo para ser. À aldeia sem eletricidade chegarão dias de chuva e frio, de gente isolada em roupa escura, que se cose com o chão e com as casas sem prumo. Viver aqui ao sol da minha alegria só é possível quando se aprende a rir por dentro, discretamente, para não ofender mágoas antigas, infidelidades, mortes ou traições que ainda se escondem sob a sisudez do hábito. Só as crianças enchiam as ruas e largos de gargalhadas e irreverência mas as que não emigraram ficaram por nascer. Os desempregados recolhem a vontade de ter filhos e, na gente velha e azeda, não brotam meninos. Vim para ensinar as primeiras letras na Escola em que a última criança já não mora na terra. Ofereci-me para alfabetizar adultos e tenho alguns alunos interessados. Vêm, sentam-se, param nos meus olhos uma expetativa mansa e deixam que lhes segure a mão para o traçar das letras. Nunca posso avaliar o que aprenderam em conversas gerais. Por isso os procuro depois para saber dos resultados, evitando confrontos, vergonhas, desistências. Aproveito e provo da broa, bebo o tinto caseiro, aqueço-me à lareira de cada casa e saio para repetir gestos, perguntas, ensinamentos. Com o método de Paulo Freire é mais fácil mas aqui, nesta solidão pesada, a tristeza escorre, como a humidade, na cantaria do solar e nas escaras do reboco dos casebres. Aprendo a frugalidade, a resistência a todas as faltas , a viver feliz só por saber que vens. Um dia também eu deixarei de ser preciso ou, se alguém acudir à aldeia para a repovoar, talvez volte a ser muito necessário. Até lá, certo de que poderei dividir contigo as cores da serra e a cama de ferro, já começo a ser feliz.