No fundo do meu quintal
Série Histórias da minha vida
Às vezes sou surpreendido com um enorme sentimento de saudade dos tempos antigos. Pra ser honesto, não é nem tão "às vezes" assim. Volta e meia meu olhar se fixa no horizonte, ganha um brilho diferente e um ar de isolamento total e profundo. Quem está do meu lado não consegue imaginar que, num instante, com a rapidez do pensamento, assumo o controle da minha máquina do tempo, que quase sempre está programada para voltar há muitos anos atrás. Não me arrisco muito a bisbilhotar o futuro, o desconhecido. Não que o novo, o atual, o tecnológico me desagrade. Pelo contrário, acho que sou até informatizado demais, ávido demais pelos softwares e aplicativos que se multiplicam sem parar. Mas se viver no tempo atual já é meio assustador, desafiador e inseguro, imagine então no futuro. Assim, sempre deixo essa viagem ao futuro pra amanhã.
Mas na verdade sempre fui mesmo um saudosista, sonhador, viajante. Desde a minha infância sou assim. A propósito, é pra lá que minha máquina do tempo sempre me leva, pra revisitar uma das melhores épocas da minha vida. No enorme quintal da minha casa tinha jabuticabeira, limoeiro, pé de laranja, goiaba, galinha, pombas. Eu e meus irmãos passamos muito tempo da nossa infância ali, cada um se distraindo com suas coisas. Eu, particularmente, tinha uma afeição muito especial pelo meu cavalo alazão, que era muito alto, forte, de pelo avermelhado e com um comportamento irrequieto de quem está sempre pronto pra uma nova aventura. Bom cavalo aquele.
Na verdade era apenas um moedor de cana. Dois caibros de madeira fincados no chão, um do lado do outro, sustentavam duas latas na sua parte superior, uma acima da outra. As mesmas tinham diversos furos no corpo, feitos de dentro pra fora com um prego, formando saliências espinhosas. As latas foram enchidas com concreto e era no estreito vão entre elas que enfiávamos as canas de açúcar, que esmagadas deixavam escorrer o suco para uma bandeja que ficava exatamente abaixo, vazando então para um tipo de funil adaptado na lateral da engenhoca. Do centro de uma das latas foi "chumbado" no concreto um cano de ferro, que passava por um furo feito nos caibros e se dobrava em formato de manivela.
Num tempo em que refrigerante era um luxo reservado para alguns fins de semana, nosso moedor de cana garantiu nosso refresco por incontáveis vezes na nossa vida. Quando o mesmo não estava em uso, ali parado, se transformava então no meu possante alazão. Os caibros se transformavam em pernas, as latas em corpo, o funil virava o rabo e a manivela, devidamente posicionada para cima, era uma cabeça perfeita para o cavalo. Amarrava um velho pedaço de corda ali, selava as latas com um velho tapete de minha mãe, emprestava um chapéu panamá e um reio que meu pai deixava pendurado no rancho, calçava meu sapatão e pronto.
Nenhum caubói no mundo se sentia mais poderoso do que eu no lombo daquele animal. Aliás, todos eles foram derrotados por mim nos intensos duelos e tiroteios que travamos naquelas desertas e empoeiradas cidades do velho oeste.
Partindo dali, do fundo do meu quintal, foi que empreendi as maiores (e melhores) viagens da minha vida. Cavalguei por extensas pradarias, perseguido às vezes por lobos vorazes, cruzei desertos áridos por vários dias, contando apenas com a sombra da aba do meu chapéu e com meu cantil de água, que era uma garrafinha plástica cheia de água, amarrada com um barbante e que eu levava à tiracolo.
Foi nessa época que tive contato com os grandes chefes e guerreiros indígenas, acompanhei carruagens carregadas de ouro em perigosas diligências e parti muitas vezes, ao lado do xerife Pat Garret, numa caçada desenfreada ao lendário bandido Billy The Kid. Nunca perdi uma batalha, mas confesso, cheguei a levar um ou dois tiros. Por sorte não foram fatais.
Não tinha medo de nada e meu cavalo jamais se cansou. De vez em quando parávamos debaixo da sombra de uma árvore, ao lado de um riacho. Eu apeava do cavalo, tirava meu chapéu, amarrava a corda no pé de jabuticaba e corria na torneira da cozinha encher o meu cantil com água fresca. Mas era só o tempo de reabastecer e partir de novo em busca de uma nova aventura ou de uma viagem por lugares mágicos e deslumbrantes, onde eu conseguia até sentir o cheiro da poeira, da relva e da pólvora do meu revólver.
De repente uma mão toca no meu ombro, me viro lentamente e ouço vozes que vem de longe, cada vez chegando mais perto e mais alta...
- Ei, você não está ouvindo eu te chamar??? Tá viajando??? Faz meia hora que tô falando com você...
Bom, minha máquina do tempo geralmente volta assim, na base do grito e de um sacolejo no ombro. Nem tive tempo de me despedir dos meus amigos índios e caubóis.
Mas tudo bem, eles sabem que a qualquer instante eu embarco de novo na minha máquina e, se meu alazão não estiver ocupado produzindo caldo de cana, estaremos de novo juntos no encalço dos mais perigosos bandidos do velho oeste.
Billy The Kid que se cuide.