A pipeta de Teotista

A sala de Ciências era a mais interessante das dependências do Ginásio, com aqueles armários e aparelhinhos de experimentos que nem sempre estavam ao alcance de nossa mão, mas bastavam e asas davam, à imaginação.

O anel de Gravesande, por exemplo, aquela esfera de aço pendurada numa haste encurvada, enquanto fria passava normalmente num aro que se lhe colocava logo abaixo, mas quando aquecida - havia uma espécie de lamparina na base do aparelho - babau, não passava naquele aro nem a pau.

E dona Teotista, já próxima da aposentadoria, ou dela já bem além, é que tinha a chave daquele reino encantado - e trancado. Dominava bem a matéria que vinha ensinando a décadas e a gerações, mas já não se via na velha mestra aquele ardor, aquela vibração - mesmo com tanta aparelhagem à mão.

Na verdade parecia mais agastada, com a vida e com a classe que regia, a cada dia. Tossir na sala era prenúncio de expulsão e suspensão. Raspar a ganganta então... Teotista desconfiava de tudo e de todos, achando que lhe estávamos a caçoar. E era bem verdade sua suspeita, só que mais muda era a nossa desfeita.

Uma exceção apenas um dia ela abriu para o Wellington, o Cabrito, para tossir - não berrar. Provavelmente porque a mãe do garoto, pressurosa, avisara formalmente do estado tússico do menino. E ele tossia. Mas abusava, a gente bem percebia - e persabia. Garantido o sursis naquele dia, o bom Cabrito não erraria. E berraria.

E passou a tosse, passaram os achaques e fomos nos acostumando àquela periclitante convivência. Nem as idas regulares de Dona Teotista para trás do quadro negro - que era móvel - para assungar sua saia e reajeitar as fraldas da blusa no seu interior já nos comoviam.

Mas o dia em que ela abriu a gaveta de um armário e me mandou pegar uma pipeta...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 23/09/2014
Reeditado em 23/09/2014
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