O PASSEIO DE BICICLETA
Passei a semana inteira planejando a tal viagem com meu amigo Marcos Vinícius. Na ocasião, eu firmara sociedade com Carlos (alcunha Carlone).Tínhamos uma oficina "especializada" em bicicletas, isto é, mal sabíamos desempenar uma roda. A localização era pouco privilegiada, pois não ficava no centro capitalista da cidade. Podíamos ouvir do opifício nitidamente os resmungos de minha mãe com os cachorros. - Cambada de porcos! - Dizia ela. Não obstante, estávamos empregados. Nenhum linguarão atreveria a dizer que éramos uns preguiçosos.
Apesar do fraco movimento, sempre arranjávamos algo proveitoso para fazer. Fabricamos o mascote da firma, sendo utilizados um cubo velho para formar o corpo e pedaços de corrente para os membros superiores e inferiores.
Construimos, com alguns jornais, uma excelente bola para a nossa sagrada peladinha de todas as tardes. Terminada a partida, tirávamos uma boa soneca sobre o tapete aveludado. Esquecia de citar o arcaico radinho a pilha, um companheiro inseparável. O pobre funcionava dez horas seguidas. Sabíamos de cor a programação e quais as músicas estavam nas paradas de sucesso. Jean, um outro "chegado" nosso, dizia que o aparelho trabalhava mais do que os seus donos. Se não estávamos despertos, surpreendia-nos observando alguma freventa na calçada.
Certa vez, acordei espantado com um barulho fragoroso em minha janela. Levantei, toquei o interruptor e acendi a luz.
- Quem é? - Perguntei.
- Aí, maluco! É Vinícius, tá ligado?
- Marcos, isso é hora de acordar os outros?
Após consultar as horas em meu relógio de pulso, verifiquei, uma da madrugada! Abri o caixilho de madeira antes que ele o pusesse abaixo.
- Vamos marcar um "pedal" pro sábado?
- Demorô!!!
Naquela época usávamos uma linguagem aborígene. O funk era meu estilo de curtição. Até cheguei a me tornar MC (Mestre de Cerimônia) em Belo Horizonte. Meu Pai Santo, logo eu que cresci ouvindo Scorpions e Legião Urbana! Não sei o que havia acontecido comigo. Estaria tomado pelo espírito do "Silva"? Também vim a gravar um CD de rap com duas faixas. Numa delas, dizia: Potranquinha linda/ Do popô arrebitado... Renato Russo, Cazuza, Chico Buarque e Tom Jobim, o que eles pensariam de uma asneira dessas?
Hoje, antes de me enclausurar para dar continuidade a este conto, fiquei perplexo. Ao folhear o jornal "Estado de Minas", uma manchete me chamou a atenção: "Cerveja com verba da educação!"
Quando o brasileiro desenvolverá um senso crítico se os educandários não passam de meras manufaturas de robôs? Esse é o sistema no qual estamos inseridos. A maioria não se interessa pelos rumos do seu país. Pouco se discute ou questiona. É como diz Zeca Pagodinho: - Deixa a vida me levar... Aplaude-se a "Quebra Barraco" melhor que Caetano.
- Então tá combinado. Amanhã vou trazer minha "magrela" procês dá uma olhada.
Concluída a conversa, o "doidão" saiu. Fechei a janela, e podia ouvir, ao longe, as gargalhadas daquele desajuizado. E lá, se foi ele, com seu jeito debochado.
Na segunda-feira, a Rita, irmã mais nova do Vinícius, procurou-nos depois do almoço. Marcos trabalhava como maloteiro, uma espécie de office boy, numa empresa produtora de ferro silício, função que mais tarde seria exercida por mim. Ordenou a sua mana que deixasse a bicicleta na oficina para revisão. Estava eu fazendo a sesta no sofá da sala quando a campanhia soou estrepitosamente. Engraçado falar sofá da sala, principalmente em morada de pobre. É quase como entrar para dentro ou subir para cima (pleonasmos comuns). Geralmente são os únicos no domicílio, comprados à prestação nas casas Bahia. Porém, naquela época, dávamos o luxo da especificação, porque nós sim, tínhamos um sofá-cama bem de frente para a pia.
Recordo-me com perfeição o bafafá que isso causou. De um lado, minha mãe censurando: - Que idéia de jerico! - Do outro, o jerico, meu cunhado: - A senhora não tem se queixado de dores nas pernas? Agora vai poder picar as verduras sentada. Com a saúde não se brinca.
Entretanto, mamãe ainda teria força suficiente para chutar-lhe o traseiro. Com certeza, vontade não lhe faltou.
Fiquei um pouco irritado, mais pelo rumor da campanhia que por voltar ao serviço antes do horário. Havia dois vultos na porta. Um, identifiquei de imediato: uma garota cheinha, não muito alta, empurrado uma bicicleta; o segundo, era indefinível e, somente, ao chegar à janela, pude certificar que também se tratava de uma garota. Era a nossa freventa preferida, filha de Lurdes cabeleireira. As duas tinham um salão na rua da igreja, quase de frente para a nossa casa.
Morávamos na rua João Monlevade, próximo à esquina, pois, no frontispício a prefeitura construíra uma praça, ou melhor, algo parecido com uma praça. O mato substituía a grama, árvores: somente um pé de graviola, e os assentos que representavam figuras geométricas, foram arrancados e levados um a um pela própria administração pública, com a promessa de edificarem um novo largo no local.
De vez em quando os prefeitos mandavam capinar o terreno. Um trabalhador afeiçoado provavelmente gastaria umas seis horas para concluir a obra. Todavia, os morcegos enviados pela prefeitura conseguiam uma façanha: levavam cinco dias de serviço. Três dias para capinar, um dia para ajuntar o mato e mais um para colocá-lo em cima do caminhão. A vizinhança ficava incomodada com aquilo. Era doído ver aqueles homenzarrões escorando o queixo no cabo da enxada.
Apesar de tudo, ficávamos felizes quando eles chegavam para a limpeza. Não tão felizes quanto a Adriana, minha vizinha dos fundos. Certa vez ouvimos uns gritos estridulantes vindos de sua casa. Mamãe logo proferiu: - Deve ser briga com o marido. - Estava enganada. O bicho que agredia a Adriana era outro. Um baita bufo marinus, vulgarmente conhecido como sapo cururu.
Os ataques eram freqüentes por causa do matagal. Aracnídeos, répteis, anfíbios, insetos e alguns mamíferos nauseabundos dividiam conosco a sala, a comida, o chuveiro e até mesmo a cama, como daquela vez em que meu tio, bêbado, dormiu abraçado com um gambá.
Tirando esses contratempos, a visão era privilegiada. Da janela da sala podíamos acompanhar todo o movimento do salão. Meu sócio é quem gostava! Esfregava as mãos mordendo a língua no canto esquerdo da boca, sedento. Houve uma semana em que almoçou três dias seguidos lá em casa. Só não ficou no sábado porque mamãe ameaçou cobrar o PF.
- Oi! Esperem um pouquinho, vou apanhar a chave da oficina.
Após atender as meninas, comecei a trabalhar a bicicleta do meu amigo. Soltei os freios, tirei as rodas, os eixos e abri a central para lubrificar. Era preciso que os veículos estivessem bem macios no dia do passeio.
Lá pelas dezessete e trinta, o Marcos passou na LC Bikes. Eu estava concentrado enraiando uma roda.
- E a magrela? - Indagou logo de cara.
- Já está prontinha pro sábado! A propósito, aonde vamos?
- Vamos à Dionísio, maluco!
- Mas é longe pra caramba!
- O que é isso!? Você não vai amarelar agora, não é?
- Claro que não! Somos atletas, oras!
Sofremos uma forte resistência por parte de nossas mães. Havíamos completado a maior idade há alguns anos, apesar disso, as duas não queriam permitir de maneira alguma que fizéssemos a tal viagem. Não era mais um simples passeio, considerando os quase cinqüenta quilômetros e o meio de transporte com o qual pretendíamos alcançar nosso destino.
Mesmo com toda aquela relutância, partimos para a aventura. Combinamos o horário na sexta-feira. Fiquei de passar na casa do Vinícius às cinco em ponto.
Acordei por volta das quatro e meia. Tinha deixado tudo em mãos: luvas, mochila, garrafinhas com água e soro, Kit primeiros socorros, etc. Despedi da minha mãe que ainda me alertou: - Não vai, olha a teimosia! - Mesmo assim arrisquei.
Pensei que encontraria o Marcos embaixo das cobertas, mas ele já estava de pé. Tinha acordado antes de mim. Para falar a verdade, ele nem se quer dormiu. Passou aquela noite inteira recostado no sofá assistindo filmes de sacanagem.
A mãe dele também pediu para desistirmos. Estávamos tão alucinados que nem demos atenção. Saímos igual a dois dementes pela rua afora, acordando a vizinhança inteira.
Quando virávamos a esquina, os anjos enviaram-nos o primeiro sinal. A garrafinha que eu colocara no quadro da bicicleta estourou. Fiquei com o tênis e a meia ensopados. Nem me importei. Acompanhei o Marcos numa de suas estrondosas casquinadas e segui adiante na doidice.
No último bairro da cidade, tomei um tremendo capote ao virar o guidom para entrar numa outra rua. Serenava bastante naquela manhã e, para variar, os pneus da minha bike estavam carecas. Desta vez o Marcos teve de rir sozinho, porque eu não achei a menor graça.
Ao chegarmos na MG, deparamos com um grupo de garotos que com certeza voltavam de alguma baderna. Um pouco assustados, empurravam uma bicicleta aro vinte pelo acostamento. Isso fomos perceber depois. Na circunstância, queríamos era "tirar uma onda"! Acrescentando uns trezentos quilômetros a nossa proeza, perguntamos orgulhosos: - Por aqui chegaremos à Vitória? - Como aquilo fez bem ao nosso ego! A expressão no rosto daqueles moleques, os comentários em voz baixa e a resposta em coro: - Sim, é só seguir em frente. - Vocês estão vindo de onde? - Perguntou o mais alto. - Ipatinga. - Marcos respondeu. No entanto, tudo não passava de uma mentira piedosa. Quem nunca mentiu para sentir, nem que seja por alguns instantes, o mundo girando ao seu redor? Que Ipatinga que nada! Vivíamos todos ali mesmo, em Nova Era, cidadezinha pacata entre as montanhas de Minas.
Pedalamos mais ou menos nove quilômetros e o terceiro aviso apareceu. Agora era a vez do garfo dar problema. Estava um pouco roçado, por isso começou a bambear. Para o meu azar eu tinha posto na mochila umas peças sobressalentes. Paramos numa guarita de ônibus, fizemos uma gambiarra na forquilha e continuamos.
Não percorremos dez metros e a corrente da minha magrela arrebenta. Quarto aviso. Deus parecia gritar lá de cima: Não vão, seus idiotas! Mas estávamos completamente cegos, embriagados pela loucura. Confesso que pensamos em desistir, porém, o Vinícius disse que queimaríamos o nosso filme se voltássemos. Já pensou, encontrar com os garotos do acostamento? É, não dava pra voltar mesmo.
Remendamos a corrente até chegarmos na cidade de São Domingos do Prata, que fica à dezoito quilômetros de Nova Era. Lá procuramos uma oficina para comprar outra peça. De corrente nova, estávamos prontos para retornar à viagem.
Com todos aqueles contratempos, não adiantou muito ter despertado tão cedo. Pretendíamos estar em Dionísio por volta das nove horas, mas era exatamente quando deixávamos o Prata.
Encantava-nos a magnificência da paisagem que se desdobrava nos dois lados da pista. Eram infindas plantações de café, gado pastando e verdureiras com seus enormes balaios na cabeça. Nem sentiríamos os trinta quilômetros a nossa frente, não fosse pela bicicleta do Marcos. A roda traseira da danada começou a folgar. - Só faltava essa! - Gritamos. Mas era apenas Deus nos dando outra sacudida.
Quase fomos atropelados quando descíamos a Serra da Posse. Um carro em alta velocidade invadiu o acostamento para desviar de um buraco. Marcos e eu entramos com as bikes num colonião e por um triz nos salvamos.
À trancos e barrancos vencemos o desafio. Por volta das doze horas entramos na cidade.
Dionísio não é muito grande, cerca de trezentos e sessenta e três quilômetros quadrados. Possui em torno de dez mil, cento e cinqüenta e seis habitantes, a maioria mulheres. Devido a este último dado, resolvemos passar a noite naquele harém. Ficamos na casa da minha madrinha, Geralda.
Fomos muito bem recebidos. Há tempos não via a madrinha, meus tios e primos. Da família todos moravam uns perto dos outros, com exceção do meu tio Antônio. Este residia numa fazenda afastada da cidade. Era um local íngreme, de difícil acesso. Para se ter uma idéia, apenas de jipe conseguiam chegar ao casarão. Quando chovia, somente a cavalo.
A jornada resultou num tremendo cansaço. Ainda com as pernas bambas, decidimos sair para explorar o lugar. Seguimos rumo à praça central. Encontramos um banco vazio, onde sentamos. A idéia era andar pelos bairros, conhecer os arredores, mas a dor nas canelas foi mais forte que a gente.
Avistamos uma sorveteria do outro lado da rua. Haviam várias mesas do lado de fora e numa delas conversavam três garotas. Uma loira e duas morenas. Na verdade só havia uma morena, porque as outras duas tinham atitudes um tanto suspeitas.
- Deixa de ser bobo! É normal as amigas passarem a mão uma no rosto da outra! - Disse o Marcos. Ainda completou: - Você não saca nada de mulher. Vai por mim que você vai bem.
- Então é normal?
- Mas é claro!
- E é normal também as amigas beijarem uma na boca da outra? - Aí que ele se deu conta. Mesmo assim fomos até à mesa delas, afinal, sempre achamos o preconceito uma doença da alma.
Batemos o maior papo com as três. As namoradas também eram de fora. Moravam em Teófilo Otoni e foram para Dionísio a convite da amiga. É que justo naquele dia iria acontecer uma festa na cidade, num clube que, por coincidência, ficava ao lado da casa da madrinha.
- Então, vocês são os dois malucos que nós quase atropelamos hoje de manhã?
- Isso mesmo! De vez em quando a gente gosta de pedalar pra longe. Dá uma inexplicável sensação de liberdade. - Devido a minha timidez, Marcos tomou a palavra.
As namoradas ficaram e nós três descemos a rua principal. Deixamos a Débora em sua residência e continuamos nosso caminho, disputando-a com unhas e dentes.
Combinamos de nos encontrar mais tarde na festa, contudo, ocorreu um imprevisto. O jantar não desceu muito bem e, para completar, estávamos exaustos. Se fossemos à festa, com certeza não agüentaríamos ir embora no dia seguinte. Achamos melhor acompanhar as galinhas no toque de recolher.
Com toda aquela estória de passeio, comemoração e garotas, acabamos deixando passar despercebidas as bicicletas do lado de fora da casa.
Acordamos bem cedo no domingo, doidos para pegar estrada e sentir novamente o gostinho da aventura. Tomamos o café pelos olhos e pelo nariz, despedimos do pessoal, mas na hora de buscar as bikes tivemos uma grande surpresa. Nem o rastro dos pneus estava lá. O desespero tomou conta de todos.
O marido da minha madrinha percebeu um rombo na cerca do quintal. - Eles devem de ter atravessado o rio com elas. - Observou.
Partimos para a morada do Giovani, o único policial da cidade. Ao tocarmos a campanhia, ele surgiu na sacada com uma toalha enrolada na cintura.
- O que houve? - Perguntou lá de cima.
- Desce rápido Giovani, aconteceu um roubo em minha casa. - Meu tio gritou, abalado. Acostumei a tratar de tio o marido da minha madrinha, além disso, ele gostava, pois, nunca tivera sobrinhos.
O coitado do policial fez o impossível para tentar recuperar as bicicletas. Averiguou o quintal inteiro, percorreu a vizinhança e até atravessou o rio no meio de animais mortos e dejetos fecais. Mas ali é que as magrelas não estavam. Por fim, ele falou: - Vi umas pegadas na outra margem do rio. As bicicletas podem estar na favelinha.
- Não falei que eles podiam ter atravessado o rio. - Após pronunciar estas palavras, meu tio convocou-nos para ir à favela, certo de que encontraríamos as duas bicicletas.
Nunca vi o Marcos tão enfurecido como naquele dia. Trouxemos uma faca para cascar laranjas durante o itinerário. Ele a colocou na cintura e saiu na frente de todo mundo. - Se esses safados não devolverem as nossas bicicletas, vai rolar sangue. - Disse, com os olhos cheios de cólera. Era uma mistura de Sylvester Stallone com Crocodilo Dundee.
O Giovani queria buscar a viatura, mas meu tio achou melhor irmos na pick-up do meu primo para não chamar a atenção. Eu e o Marcos fomos na carroçaria, conferindo os quintais por cima dos muros. Nem sinal das bikes. Enquanto preocupávamos em recuperar nossas amigas, o policial buzinava para as freventas que passavam. Conhecia praticamente todos os brotinhos da cidade.
Gastamos metade do dia procurando as bicicletas, sem sucesso. Por outro lado, conhecemos garotas maravilhosas através do Giovani.
Na entrada da noite, meu tio levou-nos de carro até Nova Era. Não foi fácil agüentar todas aquelas repreensões. Sem contar as assuadas dos colegas. Até hoje riem da gente por causa disso. Mas aprendemos muito com tudo o que aconteceu.
Barbosa, Lauro Gabriel
Contos/Lauro Gabriel Barbosa.-2006.