A almotolia

Não digo que as mexidas do Zé chegassem a nos fazer matar aulas só pra ficar à sua volta, mirando cada passo seu na instalação da serpentina lá em casa, mas seguramente nossos deveres de casa, nossas leituras passaram por um período de significativa de baixa naquelas semanas em que, para resumir, tudo parecia pelo cano ir.

O Zé, Raimundo Soares de assinatura, e Redondo de apelido e estrutura, além de empregado da Prefeitura, onde respondia pelo setor quiçá mais áulico do que hidráulico, era contra-parente nosso, casado que era com a Dinininha, tia de mamãe – e tia-avó minha.

Aceitou fazer nossas instalações com um misto do orgulho do bambambã e um pouco de condescendência contra-parental, tão requisitado que era não lhe faltava trabalho extra – e bem remunerado com mimoseios sempre de bom grado – nas casas de madames e de doutores da cidade. E fazia questão de proclamar essa sua popularidade e utilidade pública – além de espicaçar o café la de casa, que lhe era servido na freqüência de suas jactâncias. Chamava o nosso café simplesmente de ‘água de batata’ – mas não passava sem a preciosa e obsequiosa rubiácea.

Para temperar a soberba social, contava suas anedotas, geralmente se especializando nas funções fisiológicas do baixo-ventre. Dava a

impressão de se deliciar com o constrangimento alheio – ainda que temporário, vítima de um ‘vento’ intempestivo e mal-dirigido – de preferência de moça.

Assim o Zé, assim como o nosso café, mas o rodeávamos assim mesmo. Ele era bom e consciencioso no seu trabalho e a serpentina que instalou em nosso fogão, com aqueles canos paralelos trazendo água fria e levando-a quentinha para o cilindro eram o primor da tecnologia que estava ao nosso alcance na certeza de um banho quente – desde que rápido. Afinal éramos muitos e, inapelavelmente, a hora do banho convergia pra água fria.

O Zé tinha muito zelo e até um certo ciúme de suas ferramentas, de sorte que, prevenidos, evitávamos tocá-las. A não ser quando ele e os nossos pais porventura se distraiam – para a nossa rápida e oportuna aventura.

A máquina de fazer rosca em cano – naqueles tempos A.PVC, ou antes do pvc – era sólida, pesadona e impunha respeito. A chave de cano era por demais conhecida, pois havia uma igual, e mais nova, na casa

vizinha de vovó; a segueta não entusiasmava, ela que pra serrar um cano era tão brava, mas a almotolia…essa sim, era toda novidade, feita de cobre, bojudinha, com aquele biquinho comprido, afiladinho e ainda

tinha um botãozinho para se pressionar o óleo…Pena que o primo Maurício, filho do dito Zé, naquele dia por ali, dela não arredasse o pé…

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 20/09/2014
Reeditado em 11/11/2022
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