As Gonçalas

Todo mundo as chamava de Gonçalas. Devia ser Gonçalves. Mas não restam registros, a não ser de boca dos mais antigos que, se ainda não foram, vão indo, sumindo.

Sobém, Manuela e Raquel, as três irmãs que moravam na ladeira "do Vinício". Desde o inicio, ou pelo menos de tempos remotos, longe desse nosso bulício. A casinha delas, paredes amarelas, tinha os seus marcos de madeira de lei, telhas portuguesas e quiçá fosse assoalhada, pois bem se ouviam suas passadas. Singela a morada, complementava-se com um quintal grande, com árvores já maduras, frondosas, estendendo-se por um terreno inclinado que ia do muro que o circundava na parte superior ao "corgo" da Olaria, ou Baiacu, que às vezes, ficava aquele fedor, e de bostas, se dizia. É que os administradores da cidade tinham descoberto a pólvora da canalização - ou sacanalização - dos esgotos para aquela via líquida natural que cortava a cidade.

Mas o cheiro talvez não as incomodasse. Teriam se acostumado a ele e agora na sua velhice, com a metabolização mais lenta das glândulas sudoríparas - pode-se ler sebo - não haviam de achar muita diferença entre o ar externo e o interior da casa.

Sobém, que há de ser corruptela de um nome pelo qual já não era mais conhecida, era a mais alta delas. Manuela, que já tinha os cabelos bem grisalhos era a segunda, meã de estatura e a mais comunicativa delas. Havia trabalhado como servente no ginásio e vivia da aposentadoria. Raquel, que completava o trio era a menorzinha, mais jovem, atracada e da índole aparentemente enfezada.

A vida delas, então, revolvia em torno da igreja matriz, que, dobrada a ladeira, à esquerda, se colocava a uns duzentos metros mais de subida, só que menos íngreme do que a dita ladeira do Vinício. Todo o trajeto era calçado em pedras redondas, pés-de-moleque, bem típico dos anos coloniais e preservado até que chegou o dito progresso, com paralelepípelos de granito, e o asfalto, depois, que dizem ser mais

bonito.

Elas não pegaram essa transformação toda não. Nem missa em vernáculo pegaram. Se chegou a elas, crédito não deram a essa invenção. Tinham lugares cativos nos bancos da igreja, logo nas primeiras filas da nave principal, do lado das mulheres, que era o direito. Ai se alguém por desconhecimento ou distração viesse a lhes tomar o lugar. Era uma resmungação feito praga a pegar. Mas o povo da cidade já lhes conhecia bem os hábitos e não havia de transgredir. Contudo, algum incauto ou forâneo, que se cuidasse.

Manuela tinha ainda o sacro encargo de zelar pelo azeite das velas do Santíssimo. Sob a mesinha da sala de estar de sua casa se viam várias garrafas de azeite de mamona com aquele precioso líquido. Que naturalmente adicionava à fragrância costumeira da casa.

Vez por outra surgia um visitante que com elas se hospedava, o Gonçalo, seu sobrinho, que muitos diziam, vivia no Rio. Tudo mudava quando ele chegava, pois a janela de seu quarto ficava permanentemente aberta e aos olhos curiosos ele expunha os seus teréns reluzentes - e também as suas virtudes, de caçador de jovens, impenitente.

Hoje, daquela casa, restam uma poucas paredes nuas, escalavradas, que não demora, cairão com o tempo. O terreno, abatumado, deu lugar à ocupação ilegal, vadia, como legado daquelas três velhinhas. O sobrinho, pelo mundo continuou. Vai ver que em algum lugar parou.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 20/09/2014
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