EDIFÍCIO SÃO BOAVENTURA

Ventura acabara de sair do consultório. Lívido, trêmulo, sem atinar direito com o caminho da porta para o corredor, procurava um jeito de arrumar as idéias completamente estupradas pela sentença dada por seu médico.

O urologista do plano de saúde, o Dr. Dédalo, sem meias palavras e mais grosso do que pescoço de hipopótamo foi logo dizendo, na bucha:

--Seu Ventura! O resultado da sua biopsia já chegou! Entregaram, hoje cedo e, infelizmente, deu positivo! O Senhor está com um carcinoma avançado nos testículos e isso tem que ser tratado imediatamente. É neoplasia maligna, galopante! Vamos cuidar dos procedimentos pré- operatórios e preciso que o senhor me apresente logo, os resultados dos exames de risco cirúrgico!..

Por favor! Isso é pra ontem! Entendeu? Pra ontem, seu Ventura!...

A cirurgia é um procedimento invasivo e teremos que pesquisar, também, o estado da sua próstata. O senhor precisa ficar sabendo que é uma tentativa para salvar a sua vida e isso deixará sequelas graves, caso sejamos bem sucedidos.

-- Mas e eu? O senhor acha que vou ficar impotente?

-- Dependendo do estado da sua próstata, sim! Ao que parece, o exame de toque indica um aumento fora do normal e a marca do seu PSA alcançou nível preocupante. Se tivermos que extirpá-la, o senhor ficará impotente, sim! Infelizmente, essa é a dura realidade! Mas, temos que considerar que é da sua vida que estamos falando.

Por outro lado, com a retirada do tumor que já avançou sobre suas gônadas, a conseqüência direta é a infertilidade. Isso quer dizer que o senhor não poderá mais ter filhos; ficará definitivamente infértil!

-- O senhor, então, está dizendo que ficarei condenado pelo resto da vida? Castrado? Eu? Um eunuco?

Como um gladiador prestes a desfechar o golpe de morte no contendor, inerme, ensanguentado, ao solo, o médico arrematou:

-- Se tudo correr como imaginamos e com o que podemos constatar na literatura oncológica, o senhor terá uma sobrevida razoável. Em contrapartida, sexo e os envolvimentos relacionados, o senhor terá que abdicar, forçosamente!

Ventura alcançou o elevador e nem se lembrou de apertar o botão que conduziria a máquina ao andar térreo. Tão logo embarcara, houve um solavanco e seu corpo sentiu a inércia empurrando-o para baixo. Enquanto isso, a seta luminosa apontava para cima. O elevador estava subindo.

Aquilo parecia levar séculos e Ventura não via a hora de desembarcar e correr para casa. Pensava em convocar uma reunião de família e colocar tudo o que estava acontecendo, às claras...

Glorinha era exatamente o tipo de mulher que qualquer homem desejaria possuir. Boa da cabeça aos pés; um verdadeiro avião! Gostosa, chuchu, coisinha fofa e tantos outros predicados eróticos, que quisessem arranjar, eram poucos para sintetizar a irresistível atração com que poderia ter qualquer homem aos seus pés.

Para exemplificar o que estou falando, todos os homens da rua já haviam tido algum tipo de sonho ou pensamento libidinoso tendo Glorinha como atriz principal. A moça povoava a fantasia masculina geral.

Dona Genoveva, uma costureira mal amada que morava na casa amarela, de número 250, passava boa parte do tempo aboletada na janela bisbilhotando as reações masculinas quando a moça passava. Era de uma inveja insana, pois tinha que se contentar com um marido cego de um olho, que vivia trocando as pernas e fedendo a cachaça.

Como se não bastasse, a megera se mordia de inveja por ter nascido despojada da bendita bunda, ao ponto de chamar de piranha qualquer mulher que ostentasse uma bundazinha mais pronunciada, por menor que fosse...

O pobre do Oiticica, o marido, não tinha um minuto de descanso. Sempre que saíam juntos, Genoveva não perdia uma oportunidade de vigiar para onde os olhos do marido se dirigiam; era marcação cruzada...

Assim, não perdia a oportunidade de criticar e colocar defeitos nas mulheres da vizinhança tecendo comentários e fofocas, sempre cáusticas.

Todos conheciam a fama da mulher de “seu” Oiticica e não davam a mínima para ela e os seus azedos comentários. Na vila havia um disseminado ranço de antipatia e de desprezo contra a costureira. Por incrível que possa parecer, nenhuma das suas clientes residia na mesma rua.

Mas, uma vez, Dona Genoveva se fez ouvir e sua casa acabou virando uma espécie de ponto de romaria. Todo mundo queria saber da novidade. Parece que uma bomba havia caído bem no meio do quarteirão.

Dona Genoveva, com sua língua, andava espalhando coisas terríveis envolvendo o Frei Ornelas, homem de meia idade, pároco da igreja que ficava no número 323, há uns trezentos metros da residência onde vivia com “seu” Oiticica.

Era uma igreja modesta que pertencera a um antigo mosteiro de padres franciscanos. O bairro era predominantemente habitado por evangélicos pentecostais e os monges eram vistos com olhares não muito simpáticos.

Por conta disso, o bispo diocesano acabou por transferir o mosteiro para um lugar mais adequado considerando que a afluência de fiéis com a conseqüente arrecadação de óbolos não ajudava, sequer, à manutenção do prédio.

Assim, optou por vender a propriedade a um especulador imobiliário que abrigava a pretensão de construir um edifício de seis andares, abocanhando uma boa soma na empreitada.

Como o bairro era dedicado a São Francisco, o prelado convenceu o empresário a dar o nome do santo ao prédio a ser construído. No alto do pórtico de entrada, seria colocado em destaque, com letras de bronze: “Edifício S.Francisco do Mosteiro”.

Frei Ornelas, o ecônomo do convento, entediado da vida monástica com suas regras e a perenidade ritualística, acabara por conseguir do bispo autorização para ficar tocando a igreja até que o novo proprietário, depois de satisfeitas as disposições legais, assumisse a efetiva posse. Assim, foi designado para exercer as funções de pároco da Igreja.

O religioso já estava exercendo seu ofício há cerca de cinco anos e, praticamente, conhecia todo mundo na rua, em especial, a criançada, com quem gostava de brincar e contar histórias.

Como ninguém sabe o que se passa na cabeça de ninguém, Frei Ornelas tinha os seus segredinhos inconfessáveis. Gostava de ver, às escondidas, mulheres peladas nas revistas e, sempre que podia, candidamente, enfiava por dentro do enorme bolso da batina marrom, uma ou outra revista “Play-Boy” ou “Sexy” que, displicentemente, davam sopa sobre as cadeiras de espera, no salão da barbearia.

Fingindo que estava lendo algum artigo na “Veja” ou “Isto É”, o Frei dava uma olhada de esguelha e, certificando-se de que não havia ninguém por perto e, zás! Logo dava um tapa em uma das revistas eróticas enfiando-a no bolso.

Na pequena casa paroquial, Frei Ornelas tinha uma arca, espécie de baú de madeira com apliques em cobre, em que guardava uns castiçais, velas e outros petrechos ritualísticos. Organizara um fundo falso, com um cobertor velho e, embaixo dele, guardava, cuidadosamente, a sua coleção de revistas de mulheres nuas, seu precioso harém...

Mentalmente, Glorinha já havia sido desnudada, pelo frei, por várias vezes e sempre que a avistava, o maroto se embebedava de tanto olhar aquela maravilha de mulher.

Um dia, Glorinha vinha da padaria abraçada a um pacote de pães quentinhos. O religioso ia caminhando em sentido contrário dirigindo-se à farmácia, onde iria comprar umas pílulas para o fígado, que se encontrava meio encrencado, em virtude da libação diária com o vinho da missa. Anos a fio o levaram a um pequeno problema hepático que incomodava o pobre homem.

Ao cruzar com Glorinha, o frade, respeitosamente cumprimentou-a, abençoando-a.

-- Deus te abençoe, minha filha!

-- Amém, Frei Ornelas!

Dona Genoveva que a essa hora estava escondida, bispando por trás da veneziana, via o que se passava na rua mas, de lá, ninguém notava a sua presença inconveniente e perigosa.

Tão logo se afastaram, o Frei quase que sem perceber o que fazia, virou a cabeça para trás, olhos cravados sem quaisquer escrúpulos, na maravilhosa bunda de Glorinha!

Aquilo foi o bastante para açular a maldade da megera que percebeu, claramente, que ao mesmo tempo em que Ornelas devorava com os olhos o traseiro da moça, uma forte dor nos nervos do pescoço lhe rendera um tremendo torcicolo.

Ao voltar da farmácia, já trazia um embrulho com o remédio para o fígado e outro para a torção no pescoço; um tal de “Ungüento de Butezim”. Incomodado, pensou: Como é que vou rezar a missa, amanhã, com esse pescoço duro?

Duas horas depois, todo mundo já sabia que o padre estava com torcicolo e que isso fora castigo de Deus para ele aprender a não olhar mais para a bunda de mulher nenhuma. Dona Genoveva que não tinha nada de católica, era pentecostal, se deliciava em espalhar o mal feito do pobre cura.

Ventura e Glorinha estavam casados apenas há dez meses e se cuidavam para não ter filhos enquanto não tivessem conseguido consolidar a vida. Ventura trabalhava em um escritório de representações e Glorinha fazia uns bicos vendendo produtos “Avon” e “Natura”. Visitava as amigas e conhecidas da escola em que estudara.

Estavam, ainda, no alvorecer das núpcias e se entregavam aos prazeres do casamento em qualquer lugar da casa. Às vezes, a mulher estava descascando batatas e aquilo despertava a libido do marido. Pronto! A furunfação começava e acabava por ali mesmo, na cozinha. Isso valia para o tanque, sala, banheiro etc... Quando dava a hora, não tinha nem que, nem porque. Como diz o funkeiro: “créu!

Glorinha não conseguira entender a mudança de humor e no comportamento do marido. Andava arredio, não esboçava o menor sinal de desejo. Ficava horas sem falar, sem rir, sem dizer nada. Estava tudo muito estranho, mesmo. Já nem estava comendo direito...

Reunida a família, ventura abriu o jogo e botou pra fora toda a sua desdita. Foi uma choradeira geral. A família nunca havia chorado tão unida como naquela noite. Todos se desmancharam em palavras de conforto e de apoio, encorajando o pobre desassistido da vida.

Acabrunhado e se sentindo o mais vil dos humanos comunicou que iria ser internado para a cirurgia na semana seguinte, se tudo desse certo com os seus exames.

Passado o momento crucial, os parentes foram se despedindo e cada qual tomou o seu destino. Ficaram os dois entregues à própria solidão e às negruras de um destino já traçado...

Na véspera da intervenção médica o paciente já internado, na Clínica Cirúrgica, fazia os preparativos para o procedimento na manhã seguinte.

Tudo pronto Glorinha aguardava, na sala de espera, o comunicado de que o marido já estava operado e que iria se recuperar no quarto, em sua companhia.

Mas, não foi o que aconteceu e à ansiedade seguiram-se momentos de apavorante estupor. Durante a anestesia peridural, Ventura fora assomado por um choque anestésico e, não resistindo, exalou, ali mesmo, no centro cirúrgico, o seu último suspiro. Agora, nem garanhão e nem eunuco...

Sete dias depois, os amigos e familiares, bem como os vizinhos se encontravam aboletados, como podiam, na pequena igreja. Seria rezada a missa de sétimo dia.

Passavam-se os minutos e Glorinha não aparecia. Os circunstantes estavam sem entender o que se passava. Foram procurar o Frei Ornelas na Sacristia e, esse também não se encontrava lá.

Foi quando, para o espanto de todos, apareceu dona Genoveva postada bem na sua janela com as venezianas escancaradas. Estufando o peito, com ares de absoluta certeza, desembuchou, esbravejante:

Podem ir para casa, todos vocês! Não vai mais ter missa, coisa nenhuma! Aquela vaca da Glorinha fugiu com o safado do Frei Ornelas! Eu vi, com esses olhos que a terra há de comer! Aquele safado não tirava os olhos da bunda dela! Vi tudinho por trás da veneziana!...

A essa altura dos acontecimentos, a igreja retornou à sua condição silente e vazia. Na sacristia, dois coroinhas se deliciavam com as revistas de mulher pelada que encontraram no baú do frei. No chão espalhados, os castiçais, as velas e os petrechos ritualísticos...

Na manhã seguinte, o corretor de imóveis que também havia sido inteirado do sacrilégio, batia à porta da Sé, procurando o Bispo, D. Emengardo.

Acabou comprando a igreja por uma pechincha... Uma pe-chin-cha!

No lugar da igreja, hoje está um espigão de apartamentos que levou o nome de “Edifício São Boaventura”...

Amelius
Enviado por Amelius em 15/09/2014
Reeditado em 21/01/2020
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