Efemeridades
Acordei sonolento sob o som de garoas que avisavam, junto da visão assomada, observando pela janela aberta, de que, o dia inteiro seria chuvoso. Compassadamente, e religiosamente, segui à biblioteca municipal Cora Coralina, desde sempre, desde quando eu não sou capaz de lembrar o exato dia que comecei a frequentar essa biblioteca semanalmente, sem faltas, sem desculpas, sem procrastinações. De forma regular eu estava na biblioteca para pegar livros emprestados. Meus livros lidos passavam de Coleção Vaga-Lume, Monteiro Lobato, Júlio Verne e tantos outros que preenchem a zona de meu esquecimento. Nesse dia, chuvoso, da garoa constante que acompanhava às horas dessa jornada diária, dessa garoa que mancha até hoje todos os fatos corretos a serem lembrados; entrementes, há feixes que ainda reluzem na lembrança, feixes opacos de um guarda-chuva sendo aberto, caminhando em meio a charcos das calçadas esburacadas, esperando em semáforos, perscrutando a imensidão de uma garoa que não tardava a acabar.
Um fato porém, era óbvio a sua lembrança nítida, sua atmosfera que até hoje ainda resisti como batalhadora em uma cicatriz na memória. Era que a biblioteca se encontrava deserta. A não ser os funcionários públicos eu era o único, enquanto lá fora na avenida não terminava a chuva, quanto menos o corre-corre, a azáfama de buzinas, de trânsito, de pedestres, de lojistas gritando estrondosos em frente suas lojas, aqui dentro nesse conforto da biblioteca vazia, eu guardava o guarda-chuva e outros objetos em um almoxarifado, falo qualquer coisa com um senhor de idade, que deve trabalhar na biblioteca até os dias de hoje, que emburrado me empurra a folha de freqüência e assinatura. Caminho então ao local exato de empréstimos de livros, uma ala ao canto direito da biblioteca, depois que eu desci uma escada empós ao balcão de atendimento, (Um suposto casal, ambos funcionários públicos da biblioteca), pois tinham algum relacionamento mesmo, ficavam me observando dos pés à cabeça, deviam duvidar de minha existência hermética na biblioteca nesse dia chuvoso. O som da garoa a cair nas telhas, o relógio que marcava às horas, o semblante extenuado dos dois, os livros que eu deixei na mesa para devolver e minha ida aos fundos das prateleiras de livros.
De praxe, como qualquer manhã que eu ia à biblioteca, fazia minha busca virgem, quer dizer, sem saber o que levar, sem ter algo em mente do que procurar, sem decidir anteriormente o que iria ler. Apenas o meu faro literário precoce me guiava entre as tantas estantes de tantos escritores que eu ainda desconhecia, e entre todos esses, escolhia sem qualquer padrão ou critério quais livros levar; E isso, nunca mais terei.
De repente, ao lado de fora, em um súbito arrebatado, uma chuva violenta caia do céu fazendo as nuvens parecerem que iriam estatelar com seus rompidos trovões. Uma chuva que me avisava, que não seria tão breve minha volta à casa. Deveria esperar mais tempo a ir embora. Ficava à procura dos livros que gostaria de levar enquanto meus olhos, sem soslaio, não desfitavam das janelas molhadas acertadas por pingos enormes de chuva que escorregavam das telhas. Encontrei meus livros que gostaria de levar, que nem sequer hoje os consigo lembrar quais sejam; outras lembranças circunstâncias são mais fortes do que a literária. E a chuva prosseguia. Chuva: eufemismo, era tempestade carregada de um céu negro, com relâmpagos e trovões invadindo as estantes de livros. Fico à deriva de caminhar na biblioteca. Com meus, não sei, talvez onze anos, dez anos, nove anos, uma idade que não associo a ocasião, caminhava ao deus-dará. Determinando resolvi ir embora, mas, algo me fez ficar. Algo capaz de afugentar todos os sons endiabrados que a tempestade trazia consigo, um diálogo mais forte do que os relâmpagos, do que os trovões, os fortes ventos assoviando nas frestas das janelas tudo isso se tornou ínfimo do que estava a acontecer. Um som estrondoso capaz de adormecer qualquer medo e atiçar uma tremenda curiosidade. Eu olhava das últimas prateleiras, entre os vazios que os livros deixavam nas estantes, o casal em uma discussão acirrada. Não me lembro das palavras, das suas frases cheias de razão; apenas dos gestos, dos dedos rápidos, das rixas que envolviam outros conhecidos. Cada vibração em esbracejados em esbravejados, cada vulto de movimentar na cadeira, cada aproximação possuída por veemência, era a minha curiosidade em perscrutar ainda mais o que acontecia. E assim, meu medo de ir embora, não era mais pela chuva violenta que invadia o bairro e sim pelo casal que discutiam como casados há anos. A chuva, aos poucos, ia se apaziguando, talvez dez, quinze minutos, não faço idéia dessa lembrança, e fui embora da biblioteca, passei rápido pela porta da ala de empréstimos sem levar os livros, por algum motivo desconhecido, por alguma razão de Édipo, fiquei com vergonha de demonstrar para eles que eu estava ali todo o tempo presenciando essa discussão que não terminava. E retornei a minha casa, pés molhadas até altura do joelho, guarda-chuva meio-arrebentado e sem leituras para essa semana. Minto: talvez voltei no dia seguinte para apanhar novas leituras, ou talvez fui em outra biblioteca; são elementos deslembrados, o que lembro, é a chuva, os vultos de mãos que discutiam, e um dia apático transformado por uma discussão de um casal em uma biblioteca praticamente abandonada.