408-APELIDO SUSPEITO - Autoiográfico
Walter Egon tinha sido vítima de apelidos desde sempre. Na escola primária, por ser muito ruivo, era chamado de “neguim-aço”; por ter o rosto manchado de sardas, era “ovinho de tico-tico”; por ser o menor da classe, era “formiguinha elétrica”. No ginásio, dezenas de apelidos, à medida em que ia crescendo e sua figurinha ia sendo associada a objetos, outras pessoas, personagens de quadrinhos: “tocha humana”, ainda por seus cabelos cor de fogo: “Wilsin caxias” ou “cu-de-ferro” , por ser muito aplicado e obter sempre as melhores notas. Um dos professores, amigo de seu pai, a que tratavam por seu Egon, o chamava de Egoninho, para diferenciar do pai.
Era tanto apelido que não se incomodava.. Chegou a conclusão que, quando atendia pelo apelido, este logo perdia a graça e desaparecia. Por isso, respondia sempre ao apelido do momento.
Cresceu, casou e os apelidos sempre o acompanhando. Funcionário de importante banco, era transferido de uma cidade a outra, e a cada mudança, novos apelidos se lhe eram impingidos.
Recém-chegado a cidade de Jales, no interior de S. Paulo, logo foi vitimizado por dois apelidos.
— Rapaz, cê tem a cara de um chofer de táxi lá da minha terra. Seu Barbosinha. — um colega de banco foi perguntando, ao conhecê-lo. — Por acaso é irmão gêmeo dele? — E Barbosinha foi seu primeiro apelido na nova agência.
Igaiara era um colega alegre, expansivo, falava alto e gesticulava muito. Quando viu o novo colega, saiu-se com esta:
— Cara, você é o reverendo escrito.Vindo lá de Minas. É a cara dele.
E dali pra frente, Igaiara só o chamava de reverendo.
Ora, acontece que ganhou estes novos apelidos nos primeiros dias na nova agência. Tinha ido para conhecer a cidade, alugar uma casa, a fim de trazer a família, composta de mulher e quatro filhos. No mês seguinte, tendo locado uma boa casa, de alpendre altaneiro estendendo-se de frente para a rua, como uma sacada, fez a mudança. Seus pertences foram trazidos pelo cunhado, Jaime, camioneiro muito prestativo.
Arrumados os móveis, feitas as adaptações, colocadas as lâmpadas, o chuveiro, etc., estavam Walter, a esposa e o cunhado descansando ao entardecer, sentados em cadeiras confortáveis, na sacada fronteiriça à rua. Conversa pachorrenta. Quando lá embaixo passa o Igaiara, que, com seus modos efusivos, cumprimenta o colega recém-chegado:
— Olá, reverendo! Como vai? Já está instalado?
Walter responde ao cumprimento:
— Pois é, Igaiara...já tou morando aqui.
— Se precisar alguma coisa, reverendo, é só chamar — E concluiu com um largo aceno de mão.
A mulher de Walter, dona Lúcy, estranha o diálogo.
— Que história é essa de reverendo? Com quem aquele moço te confundiu?
— Não é confusão, não, Ele é colega e me chama assim desde...
— Você tá se passando pastor de igreja ou coisa assim? — A voz de Lucy denotava aspereza, exigência. Jaime, que ao lado assistia aquela cena estranha, quis entrar na conversa, mas a irmã não deixou.
— Não me venha com desculpas. Você vai ter de me explicar tudo direitinho, tintim por tintim.
E ela não estava para brincadeiras.
Seguiu-se um pesado silêncio. Walter, surpreso com a reação de Lucy, arrependeu-se, pela primeira vez na vida, de não se importar com os apelidos que lhe foram aplicados.
Jaime, sempre afável e desejando ser conciliador, disse:
— Esta história está me parecendo aquela do Chiquinho Reverendo, lá em São Roque da Serra. Filho da dona Cândinha e do seu Ricardito Marques. Cês se lembram dele?
E antes que Walter ou Lucia respondesse, prosseguiu:
— Olha, ele até que tinha o seu tipo. Mas não era reverendo coisa nenhuma. Vivia com uma bíblia ensebada debaixo do braço, pra baixo e pra cima. Era meio louco, pois visitava o asilo dos velhinhos, os doentes na Santa Casa, os presos na cadeia. Até na zona ele ia, fazendo suas pregações,aconselhando, confortando. Era bem intencionado. Parece que tinha sido seminarista. Numa manhã de domingo, foi até à zona da rua Tiririca. Manhã de inverno, fria, um sol muito tímido. As mulheres estavam se esquentando ao sol, descansando da lida da noite anterior. Desgrenhadas, algumas de camisola, outras de roupão de banho, em atitudes de muito à vontade. Chiquinho Reverendo foi chegando e vendo aquela exposição de miséria humana, com sua voz delicada, falou com as meretrizes:
— Mulheres! Vocês não devem ficar assim, mostrando suas vergonhas, desgrenhadas, com estas camisolas finas. Precisam ter mais compostura.
Uma das prostitutas, de boca mais livre, respondeu em voz alta:
— É qui nois semo puta, reverendo.
Chiquinho Reverendo foi dominado por uma santa ira ante a expressão chula da mulher. Esbravejando, corrigiu a mulher:
— Não é assim que se fala. Vocês devem falar direito. NÓS SOMOS PUTAS! Assim é que se diz: NÓS SOMOS PUTAS!
A mesma mulher que fizera a afirmação, agora se dirige diretamente para o reverendo e pergunta:
— Uai, Reverendo, o senhor também é?
No domingo seguinte, Walter convidou Igaiara para almoçar. Então, o colega explicou à Lucy o inusitado apelido que aplicara no colega recém-chegado.
— A senhora me desculpe, mas o Walter tem a cara do reverendo. Reverendo Francisco Marques, que, se bem me lembro, era lá das bandas de onde vocês vieram.
ANTONIO GOBBO
Belo Horizonte, 27 de junho de 2006
Conto # 408 da Série Milistórias