A Menina Que Nunca Chorou
Em uma de minhas empreitadas em serviços de pintura, trabalhei na casa de uma senhora que certa feita me fez, para mim, uma preocupante revelação: “Rafael, eu nunca chorei em minha vida. Eu não sei o que é chorar”.
Não é crível que uma pessoa com mais de 60 anos de idade nunca tenha chorado?
Disse-me ainda mais: “nem quando criança, eu nunca chorei. Minha mãe me batia e ordenava ‘chora!’ e eu não chorava de jeito nenhum. Ela me batia, me mandava chorar e eu não chorava”.
Isso é muito preocupante e não faz nada bem, acrescentei.
Imagino que já houve circunstância(s), embora talvez um único episódio ou poucos, durante sua vida em que tenha vertido lágrimas, por maus ou bons motivos.
Não é crível constatar que em uma época na qual bater nos filhos por qualquer motivo era praxe, houvesse alguém que não chorava. Afinal, naqueles idos era raro um dia em que cada filho não levava uma surra.
Não estou falando de tapinhas na mão ou nas costas, ou pequenos xingamentos, como tem sido noticiado cotidianamente com o advento da chamada “Lei da Palmada”. Antigamente os pais batiam com gosto, chegando mesmo ao espancamento rotineiro.
Tenho uma preocupação, disse eu a ela: para onde foram as lágrimas que você não chorou?
“Não sei”, respondeu-me. “Às vezes me dava uma coisa ruim por dentro, mas eu não conseguia chorar”.
“Mas eu sou muito risonha. Rio a toa. Por qualquer coisinha eu estou rindo”, rebateu ela.
Isso não alivia as consequências das lágrimas não derramadas, pois os sentimentos existiram e eles têm que ter um ponto de impacto, uma vazão, um vertedouro.
Sei que isso não depende de você. É algo que você de alguma forma absorveu na infância e que hoje não tem mais controle.
Aquela menininha de outrora, que fechou o coração para não dar vazão aos sentimentos de dor, angústia e sofreguidão ainda habita a mente dessa senhora.
Será qual a capacidade do repositório para onde as lágrimas tantas vezes contidas foram vertidas?
Será que já transbordou?
Quantas vezes esse repositório teria se transbordado e não se percebeu que ali estavam as lágrimas retidas?
Quais os efeitos nocivos as lágrimas destinadas à exteriorização e que não se materializaram causaram no seu organismo ao refluírem?
Sendo essa a realidade de toda uma vida, a essa altura talvez não haja mais o que fazer.
Por outro lado, de alguma forma, cada um de nós traz consigo alguma anomalia sobre a qual não temos controle e que, assim como a incapacidade de chorar dessa senhora, nos limita e impacta negativamente o nosso organismo.