Calote na feira

Só faltava estar escrito vagabundo na testa. O ar dissimulado e o leve sorriso falso, aliado ao jeito titubeante de andar e ficar parado, ao olhar para os lados como quem sempre está procurando uma rota de fuga, ou se há algum perseguidor por perto, indicavam o que estava por vir.

Aproveitou que a barraquinha do churrasquinho estava cheia e pediu o carro chefe da casa: Pão com churrasquinho completo. Vinha além do churrasquinho feito na chapa (de carne de boi, de porco ou de salsichão), também cebola, alho, tomate e um molhinho especial para dar liga, tudo isso passado na chapa junto à carne do churrasquinho já pré-pronta. Se pedisse o Zé fritava um ovo junto, para incrementar mais, mas a maioria dos fregueses preferia sem ovo.

Mas pediu o sem ovo mesmo. Como já era mais para fim de feira, tinha muita gente, alguns almoçando ali mesmo o pão com churrasquinho, e completando com um bolinho de mandioca com recheio de carne moída. O “do boné” como disse a mulher do seu Zé, pegou seu pão com churrasquinho e mandou ver, como quem não tivesse achando aquela iguaria grande coisa. Com seu olhar perdido nos tomates, nas couves, nos queijos das barracas circundantes. E o seu Zé, não se sabe se por término de algum produto, ou para ir fazer alguma outra coisa muito urgente, se ausentou momentaneamente da barraca, deixando só sua mulher com uma ajudante que ia fritando as coxinhas, os cigarretes e os bolinhos de mandioca.

Nesse momento chegamos a uma parte controvertida da história, a da intenção que movia o “do boné”. Uns poderiam dizer, que pela cara do dito cujo, já era sua intenção desde sempre, desde a constituição de sua personalidade na tenra infância, ou, alguns mais racis... tradicionalistas, que isso estaria entranhado na sua genética. Outros, que foi um mero cálculo fortuito, uma ação pragmática em vista de uma boa oportunidade. Essa querela, no entanto, é só um preciosismo dos acostumados à prospecção das profundezas alheias e das próprias. O fato, é que, aproveitando a confusão, o “do boné” aproveitou para se evadir das imediações da barraquinha sem pagar o pão com churrasquinho.

Mas, independente de sua motivação, calculou errado. A mulher do seu Zé estava de olho. Ai entra outra parte controversa, embora pese, pela experiência prática que se supõe no comerciante de feira, a opção pela segunda hipótese. Não se sabe se por um feliz acaso fortuito, ou por ter visto, que sem letras, estava escrito “VAGABUNDO” na cara e no ser do “do boné”, ela já estava de olho. E quando ele saiu de vista, ela agiu. Falou para a ajudante parar a fritura e ficar de olho na barraca e foi atrás do " do boné". Para quem estava comendo seu pão com churrasquinho, com tranquilidade, e com dinheiro e intenção de pagar, só se escutou a voz brava e fininha da mulher do Seu Zé já chamando e acusado.

- Ô moço, você não pagou não. Pode voltar aqui para pagar – E frente a provável dissimulação no entendimento de que a frase ela para ele, a repetição em um tom mais alto. Ai, com a feira toda já de olho, não tinha jeito para o “do boné” mais não. Qualquer ação em falso só poderia piorar sua situação. Parou, esperou olhando para mulher do Seu Zé com uma cara de espanto, e afirmou que já tinha pagado. Mas frente à negativa dela, foi a acompanhando de volta para a barraquinha, com a sua expressão mais humilde, de gente acostumado a sofrer injustiça mas mesmo assim perdoar o injusto, e até mesmo orar por ele, sabedor pela sua fé simples mas sincera de que esse mundo é só uma passagem para outro, esse sim cheio de felicidade e plenitude, na presença constante e amorosa do Senhor de todos nós.

Voltou para barraquinha e até chegar lá e pagar continuou afirmando que já havia pago, sendo prontamente desmentido pela mulher do Seu Zé. Depois saiu e não se viu qual cara fez. Mas isso também não importava mais. O sábado já corria para a casa das onze de manhã e ainda precisava voltar para casa para preparar o almoço.

Sanyo
Enviado por Sanyo em 06/09/2014
Reeditado em 06/09/2014
Código do texto: T4951851
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