390-A GAIVOTA

— Venha, Glorinha! Venha dançar.

O convite da “professora” despertou-a do enlevo. Sorriu, levantou-se e aceitou o abraço. Saíram dançando pelo salão. Deu os primeiros passos ainda temerosa de errar e pisar o pé da parceira. Entrou no ritmo e logo se confundiram com outros pares. Estava no meio de amigas e colegas que aprendiam a dançar para o baile dos quinze anos. Era mais uma Noite das Gaivotas.

O salão do Clube Social de São Roque da Serra tornava-se mais imponente aos olhos das meninas-moças quando, nas noites de quintas-feiras, era utilizado por dona Helenice para as aulas, não só de dança, mas também para ensaiar a entrada no salão.

Parcamente iluminado para não gastar muita energia elétrica — condição imposta pelo diretor do clube, marido de dona Helenice — o salão ficava meio na penumbra. Imenso, de paredes muito altas e amplas janelas abrindo-se para sacadas no segundo pavimento do edifício.

Corria o ano de 1944. Enquanto a guerra fazia milhares de vítimas nos campos de batalha, a ordem era economizar tudo o que se podia. Por isso a iluminação era reduzida e o tempo limitado ao período de sete às nove da noite.

— Vamos, meninas, não fiquem paradas. Logo teremos de apagar as luzes do salão.

Vencer a timidez das mocinhas — jovens de 14 e 15 anos, não mais — era o maior desafio de dona Helenice. Ensinava a execução simples de passos de boleros (“dois pra lá, um pra cá”), valsas (“girando, girando”), fox (“dois pra direita, dois pra esquerda”) e sambas-canções. Rumbas, swings, tangos e outras danças mais ágeis eram deixados de lado, pois, além serem mais picantes (quer dizer, sensuais) eram mais complicados. Elas aprendiam com facilidade, os ágeis e esguios corpos de meninas que se tornavam moças.

Glorinha, criada em família rigorosamente católica, ainda encarava a dança com a sensação de culpa por estar fazendo alguma coisa de...pecaminoso. Só assim encontrava explicação para os arrepios que sentia ao ser enlaçada pelas amigas, nos contatos inocentes e involuntários de seios e coxas.

Ai!...Será que vou sentir assim quando dançar com Alfredo? — Era atormentada por pensamentos esquisitos. — Acho que não vou agüentar...vou desmaiar no salão.

O Baile das Debutantes era o evento máximo da sociedade de São Roque. Acontecia às vésperas do Natal e dele participaram todas as “gaivotas”, as meninas aprendizes das aulas de dança. O nome fora dado por dona Helenice. Via, nos movimentos etéreos das meninas, o vôo da elegante ave que, aliás, jamais fora vista na região serrana.

Como todos os anos, houve a campanha contra, feita pelo Padre Sarzedo. Do púlpito da igreja-matriz e no horário da Ave-Maria, na emissora de rádio local, invectivava com veemência e previa castigos eternos para todos os que participassem do baile. De nada adiantava, pois mesmos as famílias que freqüentavam a igreja (como a de Glorinha) faziam ouvidos moucos às advertências do guia paroquial.

Noite do baile: as debutantes, vestidas em elegantes “longos”, estavam ansiosas, aguardando na pequena sala superior ao salão o início da apresentação das moças à sociedade. Glorinha roía as unhas, Mercedes amassava as flores da faixa de seda de sua cintura e Abigail limpava a testa com delicado lenço de seda. Risinhos histéricos abafados por reclamações sobre o calor do ambiente e a demora em iniciar a cerimônia.

Enfim, uma clarinada vibrante da orquestra Pan-Americana alertou a todos: a apresentação das moças iria começar. O mestre-de-cerimônias João Kalil ia anunciando uma a uma. Cada qual, ao ser chamada, saía da saleta, descia a ampla escadaria e era recebida pelo pai ao chegar rés do salão, sob forte iluminação e intensa ovação de educadas palmas.

Após a valsa, dançada obrigatoriamente com o pai, as moças poderiam dançar com quem quer que as convidasse. Permaneciam sentadas às mesas dos pais ou amigos, à espera dos convites, cuja recusa não era de bom-tom.

— Acho uma humilhação, a gente ficar esperando sentada, que os rapazes nos venham tirar pra dançar. Igual a vaquinhas esperando ser ordenh adas. — Matilde, filha do fazendeiro Matias Matoso, comentou com as colegas quando três delas se reuniram num canto do salão.

Os receios de Glorinha cessaram à medida que era requisitada por primos e amigos. E ao ver Alfredo dirigindo-se para sua mesa, nem esperou que se aproximasse. Levantou-se e foi ao seu encontro.

— Pensei que você não me convidaria para dançar.

— Mas, como poderia deixar de vir?.

Enlaçados, giraram pelo salão. Ela não resistiu aos apertos e avanços do namorado. Falavam pouco, pois palavras são desnecessárias nessas ocasiões. A partir do momento em que Alfredo aparecera, não dançou com mais ninguém, apenas com ele. O corpo fremia debaixo do vestido. Os braços alçavam-se. A mão esquerda alisava os ombros largos, acariciavam a nuca. Os corpos se tocavam e as os rostos, por vezes, se juntavam.

Cansada, os pés doendo, relutante, querendo ficar mais — mas feliz, imensamente feliz: foi assim que voltou para casa, alta madrugada, com os pais. Cessada toda a expectativa, acabada a ansiedade, sentia-se como se estivesse num outro mundo. Flutuava como uma gaivota, que, tendo alçado vôo, pairava placidamente sobre um mundo de completa felicidade.

ANTÔNIO GOBBO –

Bhte, 27 de fevereiro de 2006

Conto # 390 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/08/2014
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