Os Náufragos
A história deste bebedor de whisky começa em 1990, ano fatal para divas como Ava Gardner ou Greta Garbo, para gente tão ilustre como o seu amigo D. Thomaz de Melo/Tom bem como para, entre outros que não vêm ao caso, Alberto Moravia, António Dacosta ou Amélia Rey Colaço tudo gente que o homem de letras conhecia bem. A primavera estava em pleno mas ali o domínio era da noite. Misturando lágrimas e sentimento, uma negra linda cantava, chorando, uma canção de Sammy Davis Jr. O Bar tinha cinco ou seis clientes que se escondiam na sombra da sala para dialogar com as ideias que já traziam fumo de charuto e muito álcool. As luzes, íntimas, escondiam o veludo puído dos assentos e defendiam corpos e rostos gastos para gerar um clima acolhedor. Quando ele entrou, com passada larga e firme, sentou-se ao balção e, pouco depois, meteu conversa com a mulher sensual que lhe pediu lume aproximando-se com a boquilha de bacará. Avaliaram-se. Ela fazia parte do pessoal e tinha por função fazê-lo gastar ali o que pudesse; ele viera apenas para beber uns copos e afogar as mágoas. Whisky do mais velho, pediu. Duplo, por favor. Olhou-a de novo. Poderia falar-lhe de tudo mas aludiu ao Telescópio Hubble que valia o seu peso em ouro mas que , cego do espelho principal, tudo o que transmitia era confuso, como se estrelas e galáxias não passassem de um borrão, dizia-se. A mulher não ouvira dizer nada, não lera nada sobre o Hubble nem sobre a Torre de Pisa em obras para se aguentar torta como convinha. Sabia só da Amália. Ah, cinquenta anos de carreira e a mesma voz, mais madura, a bater-nos no coração e a mostrar que nenhum português fica indiferente ainda que diga não gostar de fado, disse. O homem voltou a cobiçar-lhe as coxas, reviu o arfar do peito no limite do decote e achou que não fazia mal ela não estar tão atualizada sobretudo porque, a seguir, ela lhe falou de “ Under the Red Sky”, do Bob Dylan e, depois de longos momentos em silêncio, ter trauteado, como uma lengalenga, “Existir” de Madredeus. Puxou-a para a pequena pista e, esquecido de que a mulher não se interessava pelos devaneios da sua cultura, dançou a recitar-lhe poemas de Octávio Paz, o mais recente Nobel. Agora, era ela quem o puxava para uma mesa de canto, quem se expunha para, dengosa, lhe pedir outra bebida. Beberam mais. Anselmo Gomes, jornalista do “Diário de Lisboa”, despedia-se assim do Jornal que acabaria na semana seguinte. Queria uma reportagem que valesse a pena, uma notícia cabeluda, algo que lhe mostrasse a ele, Anselmo, que não fora em vão aquela vida gasta entre a política de esquerda e a boémia. Pouco sucesso, pouco dinheiro e, ultimamente, pouco ideal. Falou disto à companheira de ocasião que, cheia de boa vontade, disse: escreve sobre nós. Tu vais perder o emprego e eu há muito que me perdi pela vida. Nem homem, nem filhos, nem casa. Somos parecidos, não achas? Estamos, ambos, à tona da água mas somos náufragos.