VIDA QUE SEGUE

VIDA QUE SEGUE

Imagino que você já deve ter ouvido aquela frase famosa “O inferno é aqui mesmo”. Goethe escreveu isto no poema FAUSTO, sobre um homem ambicioso que negocia com o Diabo, trocando a alma pelo sucesso. Mas quero deixar bem claro que este não é o meu caso. Longe de mim! Morro de medo do capeta! Vade retro Satanás!

Acontece que pra mim, a frase não poderia ser mais verdadeira. Eu explico - o que aconteceu foi o seguinte: há dois anos, quando voltava pra casa depois de um churrasco, sofri um acidente terrível de moto. Reconheço a minha parcela de culpa no acidente. Como diria o lendário Vicente Matheus “tomei umas brahminhas a mais”, e mesmo assim não dei ouvidos aos apelos dos amigos que pediram para eu deixar a moto lá, e ir de carona com eles. Na minha teimosia de bêbedo, não quis nem saber! Montei na moto e acelerei. Não lembro direito do que aconteceu depois. A última coisa que vi, foi um carro vermelho atravessando na minha frente. Bati nele com tudo. Saí voando e caí do outro lado da rua. Nem lembro a marca do carro, só da cor. Maldito carro vermelho! Fiquei em coma, entre a vida e a morte. Depois de uma temporada interminável no hospital, voltei pra casa.

Passei quase um ano vegetando numa cama, mexendo apenas os olhos. Hoje, com alguma ajuda, já consigo ficar sentado na cadeira de rodas, mas sem mover voluntariamente um músculo sequer. Não consigo falar, sorrir, nem responder ao menor estímulo. Igual uma pessoa que sofre um derrame e fica paralisada, sabe? Eu estou preso a um corpo que não funciona.

No começo meus amigos vinham me ver quase todos os dias. Mesmo sem eu poder esboçar a menor reação, eles vinham, sentavam ao lado da cama e conversavam comigo. Em dia de jogo do meu time, o pessoal vinha aqui assistir as partidas comigo.

Hoje ninguém mais vem me visitar. Eu fico jogado num canto, e nem mesmo meus irmãos conversam comigo mais. Eles passam apressados e às vezes nem me notam. Virei um objeto de decoração de mau gosto, uma espécie de samambaia. Mas acho que não posso culpá-los. Se fosse outra pessoa no meu lugar, talvez eu fizesse a mesma coisa. Com o tempo, a gente acaba se acostumando com as piores situações. É claro que eles não deixaram de me amar, mas a minha realidade agora era esta, e a vida deles precisa continuar.

Mas sabe de uma coisa? Até prefiro que seja assim. Não suporto quando alguém vem me ver e fica com aquela cara de “ai coitadinho”. Ou quando vem com aquele discursinho manjado de “o que importa é que você está vivo”. Realmente tenho minhas dúvidas se é melhor estar vivo. Isto aqui não é vida! Sou um peso para minha família, e tenho plena consciência disto. Queria ver se fosse você aqui no meu lugar. Como dizia o poeta: “É fácil ser filósofo quando é o outro que está fodido”.

Mas quer saber de uma coisa que sinto muita falta? Ouvir meus discos dos Beatles. Talvez porque ultimamente tenho sido torturado sistematicamente pela empregada, que quando vem limpar meu quarto, liga o aparelho de som numa destas rádios populares que só tocam pagode e música sertaneja. Outro dia fiquei com vontade de matar a desgraçada! Foi embora e deixou o som ligado. Demorou umas cinco horas pra minha mãe entrar no quarto. Já estava tendo uma overdose de musica ruim!

Minha mãe é a única que me faz companhia agora. Todos os dias depois do almoço ela entra no meu quarto e liga a tv. Ela gosta de assistir um programa de auditório onde uma velha loira explora a desgraça alheia. Acho que chama Conflitos de Família ou alguma coisa assim. No começo eu ficava louco! Gostaria de poder me levantar e jogar a tv na parede. Mas como eu já falei, com o tempo a gente acaba se acostumando com as piores situações. Outro dia, internamente eu xingava junto com a minha mãe, uma negra gorda que havia levado a prima piranha pra morar junto com ela e o marido. Olha só a que ponto eu cheguei. Aspirante a professor de História, idealizador e politizado, agora reduzido aos mexericos da vida desta gentalha! Ai minha mãezinha, você não tem ideia do mal que me fez, me obrigando a assistir essas porcarias com você!

Mas de todas as pessoas que acabaram me abandonando, a ausência mais sentida, a que mais me dói, com certeza é a Priscila. Realmente, eu sinto muita falta daquela mulher. A ausência dela é a presença mais constante na minha vida. Acho que talvez não tenha o direito de sentir ódio, porque no começo ela esteve sempre ao meu lado. Todo dia vinha me ver. Lia o jornal, contava coisas sobre o dia dela, das pessoas que ela encontrava na rua e que torciam e rezavam pela minha recuperação.

Nós já namorávamos há três anos e pretendíamos nos casar no fim do ano. Fizemos vários planos que acabaram virando fumaça. Acho que deve fazer uns seis meses que ela não aparece por aqui. O pior é que a última coisa que fiquei sabendo sobre ela me caiu como um soco no estômago. Outro dia minha mãe me contou durante o intervalo desse programa horrível que ela me obriga a ver com ela, que a Priscila estava namorando com o Roger. Logo o Roger! Ele era um dos meus melhores amigos. Acho que por conta do peso na consciência, ele também não veio mais me ver. Isso faz um mês mais ou menos. Dá pra acreditar nisso? Quando pensava que minha vida não poderia ficar pior, que tinha atingido o fundo do poço, o destino me prega mais esta peça. Isto me abalou profundamente. Fiquei uma semana com aquele choro sufocado, com um ódio me queimando por dentro, desesperado e impotente. Numa hora dessas é impossível não lembrar um poema que minha mãe lia pra mim quando eu era criança. Era assim:

“ O amor é um punhal com dois gumes fatais: não amar é sofrer, amar é sofrer mais.”

É um pouco dramático, mas é verdadeiro.

Acontece que ontem, a minha mãe entrou no meu quarto aos prantos, com uma expressão de dor, como se uma tragédia horrível tivesse acontecido:

- Meu filho, você não imagina o que aconteceu! A Priscila e o Roger sofreram um acidente terrível de carro. Ela morreu meu filho. Os dois morreram! – e me abraçou num choro sentido, como se quisesse me consolar.

Foi então que aconteceu um pequeno milagre. Depois de dois anos sem conseguir expressar o menor sentimento, sem esboçar a menor reação, quando eu soube desta trágica notícia, os músculos do meu rosto se contraíram, e consegui soltar uma sonora gargalhada!

LaylaCuritiba
Enviado por LaylaCuritiba em 12/08/2014
Reeditado em 26/08/2014
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