Qualquer coisa...

Loredo era do tipo calado, sujeito extremamente tímido e desde a adolescência ficou conhecido por ser o garoto do walkman, uma maneira de encontrar seu próprio mundo e não precisar ouvir o que acontecia fora do headfone. O tempo passou, veio o cursinho pré-vestibular, a faculdade, e então o walkman deu lugar ao trabalho duro e as longas noites redigindo relatórios quase sempre urgentes. Os anos cobravam seu preço, mas a personalidade austera para amigos não mudava. Loredo era uma ilha de autossuficiência rodeada de esforço e dedicação.

Não que fosse o tipo de pessoa avessa às relações sociais, com dificuldades patológicas para se relacionar ou mesmo que tivesse problemas psicológicos diferentes do que a maioria das pessoas comuns carrega – Loredo não era um ser antipático. Longe disso. O pensamento de Loredo era de tal modo simples e tão cheio de sentido que era mesmo de provocar estranheza aos olhos do senso comum: Simplesmente Loredo nunca acreditou que dar risadinhas ao atacado e tapinhas nas costas o levaria a um lugar melhor do que aquele que o seu próprio esforço e entrega poderiam colocá-lo.

E Loredo foi longe. Com doze anos de dedicação nipônica ao emprego e muitas horas de sono perdida, Loredo acreditava estar construindo uma carreira sólida e mal levava a sério as piadas de corredores:

- Oh, Loredo. Hoje é sexta-feira o mundo não vai acabar se não der tempo de terminar essa pesquisa antes de semana que vem.

O homem era uma máquina de determinação; acenava como por ato-reflexo aos colegas e seguia sua rotina de labor. Entrava no elevador, cumprimentava de maneira rápida quase como um suspiro e logo baixava a cabeça.

Foi então que, em tempos de gestão de pessoas e motivadores empresariais, as coisas mudaram. Chegava à firma do Loredo uma nova gerente de RH e sua fatídica dinâmica de grupo. Et ce fut la fin! Após três dias de tarefas práticas, entrevistas e questionários o resultado foi cruel:

“Carlos Loredo Chagas: Inapto”

Um desfecho digno de um autor da Escola de Praga. Após longos doze anos de bons serviços, mas breves minutos de happy hours depois do expediente chegava o fim da linha para Loredo. A pequenez do indivíduo em relação ao sistema cotidiano fazia-se prevalecer.

Recalcitrante, ele perseguia o objetivo tentando absorver o impacto e seguia em frente por sua conta e risco, fazia contatos com outras empresas e esperava novas entrevistas de seleção. Seis meses passaram-se e nada.

- Loredo, por que não fala com o Ricardo do 602, vocês sempre se encontram nas caminhadas... Ele vive falando bem de você, quem sabe surge algo lá na empresa dele?

A ladainha da esposa o venceu pelo cansaço e então Loredo, cheio de dedos e sem saber muito bem por onde começar aventurou-se em um dos poucos contatos para fazer a “social”.

O olhar de Loredo era seco, a boca tremia. Caminhava no hall do prédio em direção à pista de cooper como quem vai em busca do seu executor. O mundo havia mudado e o pobre homem não entendia muito bem onde deveria se encaixar.

- Grande Loredo!

Esbravejou de longe um sujeito calvo, baixo e vestido impecavelmente como um medalhista olímpico em dia de final. Os tênis reluziam ao sol, o relógio de pulso lembrava o painel de aeronave e pelo visto deveria até aferir a pressão atmosférica.

- Bom dia, Ricardo. Respondeu o embaraçado Loredo.

Alguns minutos de caminhada depois e Loredo cuidadosamente foi tentando chegar ao assunto que o fez se atirar nessa intentada.

- Pois é Ricardo... Vi no jornal que o mercado parece ainda não ter se ajustado aos momentos de retração.

Comentou de modo suave como que escolhendo cada palavra de um texto previamente decorado.

- Que é isso, Loredo? Lá com o meu pessoal parece que nunca existiu crise ou fragilidade de mercado. Minha equipe eu forjo na base do foco e superação de resultados.

- Claro, sim... Respondia Loredo agora com um pouco mais de confiança percebendo que se desenhava o cenário ideal para impor a virada naquela conversa.

- Inclusive Ricardo, muito bom ouvir você dizer isso por que não sei se ficou sabendo, mas estou mudando meus objetivos profissionais. Buscando novos desafios...

- Maravilha, Loredo!

Interrompia Ricardo cheio de vigor.

- Você tem fibra Loredo, é um ótimo profissional e ainda estou pra ver alguém mais dedicado ao trabalho do que você.

Cheque mate. Era a brecha perfeita para Loredo emplacar um golaço nesse zero a zero. Parecia enfim que tudo o que Loredo passara a vida pensando sobre a inutilidade das amizades de ocasião caia por terra. Era o destino dando uma segunda chance a ele e ainda por cima do modo mais inesperado.

- Obrigado, Ricardo. Muita consideração de sua parte pensar assim. É, será que poderíamos marcar um dia durante a semana para eu passar lá no seu escritório... Tomarmos um café... Posso te mostrar um pouco da minha experiência na gestão de...

-Ih, Loredo.

Interrompe bruscamente o já não tão amistoso companheiro de caminhadas que passa a enxugar apressadamente a calvície com uma bem dobrada toalhinha azul e continua:

- Essa semana tá complicado pra mim... Tem um pessoal da auditoria vindo por aí e nessas épocas fica uma correria tremenda.

Loredo, já imbuído de um espírito de guerrilha busca forças jamais conhecidas por ele e decide enfrentar a adversidade inicial:

- Claro Ricardo. Entendo sim... Então na outra semana posso tentar marcar contigo para...

- Olha, Loredo é que o mercado parece ainda não ter se ajustado aos tais momentos de retração... Agora foco e superação de resultados não faz mais essa diferença toda... Vivemos em tempos difíceis.

- Pois é, Ricardo... (engole a seco) Acho que sei sim.

Foram as poucas e trôpegas palavras que ainda conseguiram ser pronunciadas pelo abatido Loredo. A tensão nêurica dava lugar a um vazio de sensações. Mas como se tudo ainda não estivesse em um tom trágico o suficiente, eis que veio a ceifada derradeira:

- Mas Loredo. Não se preocupe. Você sabe que pode contar comigo não é? Olha, qualquer coisa...

Batia suavemente no peito gordo com o rechonchudo punho cerrado como que finalizando um ritual religioso indígena onde o atleta obeso era o pajé e o desolado Loredo o índio outrora atingido por uma flecha. Mais uma vítima do tal fogo “amigo”.