ESPUMA DOS MARES

DOIS TANGOS ( III )

Foi minha mãe quem me levou para o orfanato . Uma casa enorme , provavelmente do inicio do seculo passado , onde o teto era bem mais alto que as casas de hoje em dia . As janelas enormes deixavam entrar um monte de ar e refrescava a sala de jogos para onde fui dirigido . O lugar era bem diferente do que eu imaginava ser . Mesmo já tendo passado por um orfanato , sai de la muito novo para poder me lembar de qualquer coisa a respeito . No caminho estava assustado com o que encontraria ; crianças tristes , emburradas espalhadas pelos cantos , sozinhas com seus fantasmas , olhos vermelhos de tanto chorar . Minha mãe estava orgulhosa .

- É muito bonito o que esta fazendo , disse ela , sem tirar os olhos da pista .

- Sintomas de uma privada que voou pelos ares . Você não ficou assim tão feliz quando aconteceu .

Ela riu .

Uma assistente social me recebeu no portão. Ela e minha mãe conversaram um pouco enquanto eu aguardava mais afastado, e antes de ir mamãe mandou um beijo que pude sentir estando a cinco metros de distancia .

- Prazer , me chamo Karina , se apresentou a assistente apertando minha mão .

Karina era jovem , pele morena e muito simpática . Era bom ouvi la falar , transmitia muita calma e ela me guiou o caminho até a sala com as mãos nos meus ombro . As crianças gostavam bastante dela , ouve um boa tarde uníssono quando a viram entrar . Ela retribuiu , depois apresentou o novo ''tio'' , que era eu , e falou que eu ficaria com eles ,brincaria com eles , e os ajudaria nos deveres e no que mais fosse preciso .

- Agora , disse Karina , depois das apresentações, vamos todos dar as boas vindas ao novo amigo !

Fui engolido por duas duzias de crianças , elas me cercaram e seus bracinhos espremeram os ossos das minhas pernas . Karina me deu um tchau já na porta , mas não pude retribuir , não ouve tempo , porque uma garotinha de cinco anos descalça e agarrada a um coelho de pelúcia me arrastou até um canto onde havia uma mesinha de chá montada . Na sua imaginação ela encheu dois copinhos rosas para me entregar um . Tive de sentar no chão mesmo , cruzei as pernas e aquele foi o melhor chá imaginário que pude tomar .

- Quer mais açúcar ? - perguntou ela , tirando dois torrões de plástico de um potinho .

Nunca houve criança mais dócil que essa . Se chamava Estela e estava prestes a conseguir uma família . Depois do chá dois garotinhos quiseram salvar o mundo , enfrentamos robôs gigantes de cinco metros de altura e um monstro que era uma mistura de crocodilo com dinossauro . Vencemos , e fomos recebidos pelo presidente como heróis . A tarde correu rápido demais , e antes de terminarmos o campeonato de boliche com garrafas pet uma mulher chamou todos para a janta . A sala ficou em silencio , mas ainda sim era possível ouvir as vozes infantis atravessarem os corredores e sussurrarem nos meus ouvidos enquanto juntava todos os brinquedos de volta nas prateleiras .

Encontrei com sr Lourenço , o jardineiro , no mercado . Eu estava embalando suas compras quando ele veio puxar assunto . Fiquei surpreso , porque ele jamais puxou assunto . Pude sentir o cheiro das titicas de galinha saindo do seu corpo . Debaixo das unhas grossas terra e mais titica . O homem usava sua roupa surrada de trabalho , botas pesadas e pele queimada de sol .

- Como vai indo , garoto ? Perguntou ele , enquanto eu empacotava bandejas de carne .

- Vou bem . Respondi , sem lhe dar muita atenção .

Só para provocar , botei o sabonete e a pasta de dente na mesma sacolinha . Fiquei esperando , mas ele não reclamou , não pediu uma sacola diferente para a pasta . Depois que terminou de pagar ajudou a empacotar o resto . Seu corpo era quente , dava pra sentir só dele estar do meu lado . Botamos tudo num carrinho , ai ele pediu para que o ajudasse levando tudo no carro . Seguimos o caminho em silencio , ambos olhando para frente . No estacionamento acendeu um cigarro , que teve o trabalho de lamber antes de botar fogo . Era daquele enrolados em palha , com fumo negro e granulado que tem um cheiro forte pra caramba. Enquanto botávamos tudo na parte de trás da sua caminhonete ele pediu desculpas . De primeira fingi não ser comigo , mas dai ele continuou :

- Não queria lhe causar problemas , garoto . Sinto muito se você se deu mal aquele dia por minha culpa .

O sol sorria forte lá em cima . Ainda botando as compras no carro falei que ele não tinha do que se desculpar . Falei que a ideia da titica no café da manhã dos velhos foi uma estupides .

- Mas eu não ia fazer isso , só estava brincando . Falei , levando ao carro um pacote com seis rolos de papel higiênico.

Depois disso ouve silencio , silencio constrangedor . Só para dizer algo perguntei como ia o pessoal no Centro Comunitário .

- Você sabe , garoto . Lá ninguém vai , só chega .

Fiquei surpreso , porque foi uma piada ?

- Olha só , Sr Lourenço , isso foi uma piada ?

Algo bastante parecido com um sorriso tímido surgiu no canto da sua boca , ao lado do cigarro . Ele foi sem deixar gorjeta .

Meu segundo dia no Orfanato , ou melhor , meu segundo dia depois da volta . Desta vez descemos todos na quadra , lá dividimos dois times com treze crianças cada para uma partida de queimada .Eu me tornei o alvo favorito dos pequenos e fui o primeiro a deixar o jogo . Tenho de dizer , eles eram bons , fortes e rápidos .A quadra era coberta , então não importava que estivesse chovendo , o dia nublado e cinzento , pois no sorriso de cada uma da pequenas pessoas deixava tudo lindo . Uma das mulheres que trabalham no lugar se aproximou . Disse que precisavam de mim lá dentro . As crianças nem deram bola quando ela avisou que eu teria de deixar o jogo por um momento . Estavam ocupadas demais numa guerra de bola de meia , que naquele momento já havia se transformado num campo sem lei . Elas queimavam os próprios parceiros e se negavam a sair do jogo.

Pegamos a escada , subimos para o segundo piso em direção a biblioteca . A funcionaria Katia perguntou minha idade .

- Quinze , respondi , subindo logo a trás dela .

- As crianças gostaram muito de você , ela não viam a hora de quando voltaria . Quem sabe , quando o sua '' pena '' acabar , não se cadastre como um voluntario .

Não respondi , isso não era uma coisa que passava pela minha cabeça . De fato , o que eu queria era terminar aquilo logo , mas não era por causa das crianças nem nada , elas eram legais . Mas , ainda sim , eu estava cumprindo serviço comunitário e isso não era legal . A chuva batia na janela e faziam o mesmo barulho de arroz sendo jogado numa panela .

Bibliotecas invariavelmente atacam minha sinusite . Não sei , por mais limpa que elas pareçam estar , seja por culpa do acaro ou poeira ou seja o que for , meu nariz fica irritado , a garganta fica ligeiramente fechada , é horrível .Não tinha ninguém ali , só livros e um milhão de personagens matando dragões e indo ao espaço . Segui Katia até mais ao fundo , passamos por mesas da altura do meu joelhos e tapetes de espuma coloridos que lembravam peças de quebra cabeça . Nas paredes desenhos feitos pelas crianças , e atrás de uma estante com livros para colorir estava essa garota ,. sozinha . Vestia camisa de algodão azul folgada demais e calças jeans pretas , nos pés All Stars vermelhos desamarrados . Katia pediu para que eu esperasse a distancia ,enquanto ela foi até a garota com longos cabelos escuros caídos sobre o rosto que parecia ler sobre a mesa mais alta da sala . A única do tamanho adulto , por assim dizer . Depois de conversarem algo , Katia voltou até mim .

- Tenha paciência com ela , me disse .

- O que quer que eu faça ? Quem é ela ? Perguntei . Estava oficialmente nervoso , e o fato de eu querer esconder me fazia parecer um bobão .

- Ela mora aqui com a gente . Vocês vão se dar bem .

Katia se afastou sem me dizer seu nome . Permaneci ali , parado entre as duas enquanto a funcionaria se afastava cada vez mais em direção as escadas . Fiquei pensando o que dizer , como me aproximar . Talvez devesse me apresentar , ou quem sabe perguntar seu nome primeiro ? Um passo após o outro fui chegando mais perto da garota que permanecia imóvel como uma boneca de cera .

Prostrado ao lado da menina de cera pude sentir o cheiro forte de hospital que exalava dela . Aquilo , por si só era triste demais. Como num de-já-vu imaginei já ter vivido tal cena . Sua respiração fazia mover a folha do livro bem abaixo dos seus olhos . As pontas negras dos teus dedos surgiam das mangas longas da camiseta , o rosto coberto pelos cabelos escuro me fizeram arcar para poder ver seus olhos , e no instante que estava por desvendá los suas mãos se mexeram para trocar a pagina , o que me deu um baita susto . Olhei em volta da biblioteca vazia , para as janelas enormes recebendo a chuva e a escuridão que as nuvens pesadas no lado de fora causavam . Fui até a prateleira e apanhei um livro qualquer , de capa dura e grosso . Me sentei de frente para a garota na mesa , esperando por alguma reação da sua parte . Acabei dizendo o mais obvio :

- O que esta lendo ?

Era isso , ela levantou os olhos para mim , olhos verdes e olheiras enormes , aparência doente , branca , pálida . Foi então que a reconheci .

- Garota múmia ! Falei . Mas ela não achou graça . Ta legal , isso não foi legal . Samanta , certo ?

Como não respondeu , continuei .

- Lembra de mim ? Na fila , no corredor estreito do consultório da Dra Tatiane . Me sentei no seu lado . Você tinha ataduras nos pulsos ..

- Lembro de você , disse ela , me surpreendendo . Sua voz baixa , dócil mas firme , continuou .

Ela ergueu o livro , mostrou O Apanhador no Campo de Centeio . Ergui o meu , os Miseráveis . Fiquei surpreso porque numa das três escolas a professora nos tinha feito ler o mesmo livro .

- É uma historia triste , disse Samanta se referindo aos Miseráveis .

Preferi não seguir no assunto , eu não lembrava muito bem da historia e ela parecia conhece la bem .

- Então você mora aqui ?

Jesus , logo terminei a pergunta me senti mal . Perguntar a uma criança se ela mora no orfanato , claro que ela não mora . Um orfanato é a mesma coisa que o Centro Comunitário , ou seja , gente indesejada deixada para trás , só que aqui elas ainda tem uma chance de sair , encontrar outra família .

- Sim , a quatorze anos , respondeu a menina .

Seu rosto era uma constante mascara de dor , e seu aspecto doentio me fez lembrar dos velhos no Centro Comunitário .

Com o livro nas mãos ela disse :

- Você sabia que Holden Caufield morreu na guerra ? J.D Salinger o fez para que ninguém ousasse continuar sua historia. , mas mesmo assim anos depois foi escrito uma continuação não autorizada por Salinger , No Outro lado do Campo de Centeio . Para muitos , ele , J. D , era um homem asqueroso . Uma de suas mulheres disse que ele bebia urina no seu sitio depois que se retirou e parou de publicar .

Se tratava de uma rata de biblioteca . Pelo jeito passava boa parte do dia ali . Minhas narinas estavam me matando , a poeira ou acaro ou seja la o que for começavam a querer me expulsar .

- Mas Holden nunca existiu ? Como pode ter morrido na guerra ? Perguntei , esfregando o nariz nas costas da mão .

Virando os olhos para cima , como que querendo dizer : mas que cara burro ! Ela disse .

- Ele morreu num conto . Mas não foi um conto dedicado a ele , ouve uma breve menção ao acontecido , contado pelo irmão mais velho dele , o cara que segundo Holden se prostitua em Holywood escrevendo roteiros …

Samanta estremeceu , como se uma brisa gelada lhe tivesse lambido o pescoço . Mas apesar da chuva , nem era um dIa tão frio assim , e mesmo que fosse as janelas estavam trancadas .

- Esta tudo bem ? Perguntei tentando não parecer indelicado .

Com certeza ela sabia que sua imagem não era uma pintura de saúde , mas você não diz a um amputado : olha , você não tem uma perna !

- Porque esta aqui ? Quis saber Samanta , voltando os olhos para o livro .

Lhe contei a historia da priva . Era a centésima vez em dois dias que fazia isso . No começo achava legal ver a cara das pessoas , como que se dizendo : nossa , você fez isso mesmo , poderia ter matado alguém ! Mas até mesmo isso já não tinha mais graça . Na verdade , um bocado de coisas que eu fazia antes já não tinham mais graça . Na verdade verdadeira , toda vez que contava aquilo me sentia um babaca . Isso não era legal .

Samanta novamente ergueu os olhos para mim , me encarou com suas olheiras doentias e nariz fino para dizer :

- Por que fez isso ?

E eis algo novo . Ninguém , nem meus pais não de sangue , Dra Tatiane , o diretor da escola , a policia quando foi chamada , o conselho Tutelar , ninguém havia me feito esta pergunta . Então não estava preparado para responde la . Preferi ficar quieto porque todas as respostas que poderia dar soariam babaca . Até o momento não tinha pensado nisso , porque ?

- Sabe, disse ela , ainda seria , eu nem sabia que um rojão podia fazer isso ?

- Foi exatamente o que pensei !

Foi quando a luz caiu . A chuva havia soltado os cabos na rua e a biblioteca ficou escura . Lá dentro , eu e a boneca de cera falante .

06/08/2014

09h53m

Cleber Inacio
Enviado por Cleber Inacio em 07/08/2014
Código do texto: T4913015
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