Conto nada Curto 4 - Anúncio Classificado

Se houvesse uma palavra que definisse Kátia, a mais correta seria: comum. Sem maiores atrativos, um pouco baixa, algumas gordurinhas a mais, nem bonita, mas não feia de todo. Kátia não era o tipo que entusiasmava os homens, levando-os a pensamentos libidinosos. Seu principal atrativo escondia-se numa espirituosidade que só se revelava, quando se convivia com ela.

No trabalho, não se ligava. Limitada, fazia as coisas automaticamente. Atendente em um balcão de anúncios de um jornal de grande circulação, suas perguntas eram despejadas, uma atrás da outra.

- É na edição de domingo?

- É na seção "Procura-se parceiro" ?

Contava as palavras. Cada dez correspondia a um real. A inflação acabara e há muito tempo que dez palavras valiam um real.

Anúncio pago, Kátia arquivava por assunto. Homem procura mulher. Mulher procura homem. Mulher procura Mulher. Homem procura Homem. Era o que se anunciava naquele jornal. Alguém tentando encontrar seu tipo ideal. A Humanidade era composta de seres que passavam grande parte de suas vidas à procura de alguém.

Naquele balcão, era raro aparecer um classificado de venda de imóvel ou de carro. De emprego, Kátia nem se lembrava mais de ter recebido algum. Os tempos eram bicudos! Desemprego em massa, etc. e tal.

O posto localizava-se na área de serviços de um shopping. Grande movimento, pessoas em busca de um presente, casais apaixonados, outros nem tanto, circulando de mãos dadas. Executivos na caça de um fast-food para saciar sua fome de sanduíches. Garotos desejando garotas. Garotas desejando garotos. A atmosfera normal de um shopping.

Quando o homenzinho encostou ao balcão, Kátia nem reparou direito. Ela recebeu o texto e as tradicionais perguntas vieram torrenciais:

- É pra domingo?

- Na seção de "Procura-se um parceiro"?

Kátia nem olhava o homenzinho. Não ouvia as respostas, mas sua mente captava as respostas. Contou as palavras. Quando finalmente leu o texto, ficou desconcertada com o título:

ET PROCURA PARCEIRA

Foi um estalo. Encarou o homenzinho. Sua pele era de tom azulado. Estatura baixa, quase um anão. Kátia iniciou um ritual de olhar alternadamente o novo cliente e o texto insólito.

A cabeça grande, mas não desproporcional.

"Extra Terrestre recém chegado à Terra, procura parceira, sem distinção de cor, altura ou idade..."

O pescoço atarracado e curto lembrava bem um antigo presidente brasileiro que Kátia vira numa foto do seu jornal.

"... que queira um relacionamento estável para futuro compromisso que redundará numa experiência revolucionária para a raça humana e..."

Seus olhos eram grandes e ovais de um verde cristalino, com uma ausência total de cílios e pestanas. Aliás, nenhum traço sequer de pelos ou cabelos, o ser era totalmente calvo. Mas nada em comum com o ET que Kátia vira no cinema.

"... iniciará as relações amistosas entre o planeta Gorion e a Terra..."

Suas mãos eram quase humanas, porém possuía mais dedos que o normal. Sete longos dedos e sem unhas.

Não gasta dinheiro com manicura! - pensou Kátia.

"... Para entrar em contato, as candidatas devem pensar firmemente no planeta Gorion."

Kátia tentou ser a profissional de sempre. Entregou a ficha de cadastro. O ser preencheu rapidamente com os dados pedidos.

Nome: ANKANOP

Endereço: PLANETA GORION

Profissão: PESQUISADOR ESPACIAL

Idade: 28 orions

Pagamento: ( )Cheque ( )Cartão (X) Dinheiro

Kátia olhou a ficha. – "Quanto valeriam vinte e oito orions?" - foi seu pensamento.

- O equivalente a trinta e cinco anos da Terra.

Kátia assustou-se. Ela ouviu a resposta de Ankanop, mas ele não mexia os lábios. Telepatia foi a idéia que passou por sua mente.

Um "é" seco ribombou no cérebro de Kátia. Não restava dúvida, uma experiência fascinante acontecia. Kátia releu o texto, contou as palavras. Cinqüenta e seis palavras compunham aquele fantástico texto. O equivalente à cinco reais e sessenta centavos. Foi essa cifra que ela cobrou do homenzinho.

Os dois entreolharam-se. Nas mãos de Kátia o dinheiro materializou-se. Uma nota de cinco, e duas moedas, uma de cinqüenta e outra de dez centavos. Sem dúvida, era real, nos dois sentidos que a palavra possa ter.

- Pode acreditar, é dinheiro mesmo. Posso materializar qualquer quantia que realmente necessito no cumprimento de minha missão. - foi a mensagem captada por Kátia.

- Tudo bem - balbuciou - seu anúncio será publicado na próxima edição de domingo.

Ankanop meneou a cabeça e retirou-se. Kátia ficou olhando aquela figura afastar-se, despertando média curiosidade naquele fim de tarde do shopping.

- "As pessoas já não se espantam com nada." - pensou.

E tinha razão, vive-se a época dos efeitos especiais, dos truques publicitários. Ankanop enquadrou-se na última alternativa, por todos aqueles que cruzaram com ele.

Olhou o texto mais uma vez.

"Para entrar em contato, as candidatas devem pensar firmemente no planeta Gorion."

Uma dúvida surgiu em sua mente. Como é que Ankanop poderia entrar em contato com todas? Se todas fizessem isso ao mesmo tempo?

- "Não há problema, eu posso fazer isso. Está previsto que faço, eu farei."

Sentiu um arrepio. Ankanop entrara em contato e respondia a sua dúvida, de algum lugar.

Durante o resto do dia, acabou absorvida por novos clientes, novos pedidos de anúncios de "procura-se parceiro" e nem pensou mais no assunto.

A figura de Ankanop só veio à tona mais uma vez, na hora de fechar o caixa. Releu o anúncio. O texto era muito formal, bem diferente daqueles meio malucos que ela acostumara-se a receber. Será que alguém entraria em contato mental com Ankanop? - pensou. Nem ameaçou formular uma resposta, entretida na soma de cheques, comprovantes de cartão de crédito e dinheiro recebidos.

A rotina de sua vida seguiu normalmente. Fechou o caixa, trancou tudo, preparou o malote para o motoboy retirar na portaria do shopping. Pegou o ônibus, desceu no ponto de sempre. Andou dois quarteirões e entrou no prédio onde ficava seu quarto e sala, dividido com Laura, amiga de infância da mesma cidade onde ela nascera.

O arranjo era perfeito. Laura trabalhava à noite num bingo. Katia saía, Laura chegava. Cada uma com suas horas solitárias e suas individualidades. Uma não perturbava a outra.

E a rotina seguiu firme. Uma chuveirada, um rápido sanduíche, uma olhada na televisão. Novela, jornal, novela, filme. Pronto, era hora de dormir.

Kátia rolou, que rolou entre os lençóis e nada. Olhos fechados, tentou não pensar, mas foi inútil. A imagem de Ankanop permanecia incutida em sua mente. Não como uma visão atormentada, mas como algo doce e suave.

Ankanop afirmara que poderia pensar nele ou em seu planeta para fazer o contato. Era fácil, mas algo dentro dela impedia-a de fazer isso.

Kátia repensou sua vida. Uma vidinha insignificante. Um emprego no shopping. Atendente de balcão de anúncios, com direito a comissões. No fim do mês, um salário que pagava o aluguel, o supermercado, sobrando alguns trocados para roupas, alugar vídeos e só...

Era vida?

Progredir? Uma pós-graduação? Fazer outra faculdade? A de Letras não fora suficiente, ou melhor, era suficiente para garantir um salário razoável. Se ela tivesse seguido a carreira de professora, receberia bem menos.

Em termos de amor, nem queria pensar. Afinal, muitos namoros inconseqüentes, que nunca fizeram-na prender-se a alguém. Algumas boas desilusões no máximo. Definitivamente, não nascera para uma paixão, um daqueles romances cinematográficos, novelescos.

A figura de Ankanop ia e voltava em seus pensamentos. Kátia levantou-se assustada, olhou pela janela, a cidade quieta, as poucas luzes, os mínimos carros. O relógio digital marcava: 2:34 PM.

Largar, sair, deixar... Era um passo incrível. Precisaria ter muita coragem. Ela teria? Não sabia a resposta. Definitivamente, desconhecia. Passou a limpo suas amizades, seu emprego (mais de uma vez), sua vida. O que perderia? Nada de substancial. O que ganharia? Essa resposta ela não sabia. O futuro era um tremendo ponto de interrogação.

- E por que não?

Kátia muniu-se de forças, concentrou sua mente e seus sentidos desviaram-se para o alvo único: Ankanop do Planeta Gorion.

A mensagem captada deixou-a atônita.

- Diga, Kátia, estou recebendo sua mensagem. O que você deseja?

Então, era verdade, Ankanop entrara em contato!

- Bem, é sobre o anúncio, estou me candidatando. Eu quero...

- Você pensou bem? - cortou Ankanop.

- Sim, não tenho mais nenhum laço familiar. Meus pais morreram, meu irmão mais velho não se importa comigo.

- E você está disposta a desistir deste mundo?

- Eu não tenho nada para desistir. Minha vida é ridícula, sem significado nenhum.

- E se não der certo? Nossa sociedade é muito diferente.

Didaticamente, Ankanop começou a descrever a vida em Gorion. Foi sucinto em detalhes, não pintou de lindas cores, mas omitiu alguns fatos, que achou que não seriam convenientes.

Absorveu a fala de Ankanop, extraindo o melhor de suas palavras. Kátia era facilmente influenciável, mas procurou não demonstrar. Crivou Ankanop de perguntas, justificando a velha e surrada tese da curiosidade feminina. Ankanop foi enfático em um detalhe:

- É uma viagem sem volta.

Por um momento, relutou:

- Como sem volta? Como não há volta?

Ankanop foi incisivo em sua explicação:

- A mulher que eu escolher, irá para Gorion, um planeta distante da Terra, bilhões de anos-luz. Minha nave fará apenas uma viagem de ida. A humana que me acompanhar não regressará. O seu lar será Gorion para sempre. É um risco.

- É um risco que qualquer mulher da Terra teria. Por que não eu?

- A decisão é sua! - respondeu Ankanop, que sentia uma ponta de atração por ela, por sua aparente convicção de aceitar aquele que seria o maior desafio de sua vida.

Kátia disparou aquela pergunta que a incomodava:

- Até agora, só eu dei a minha opinião. Resta saber, Ankanop, se você realmente me quer como sua companheira. Além do mais, acho que só eu sei do anúncio, ele não foi publicado. Eu não estou dando chance de escolha. Você está aceitando a primeira humana que efetuou contato.

Com toda sinceridade, Ankanop respondeu: sua fala não gerava dúvidas.

- Confesso que você me atrai, Kátia. E não pense que você é a primeira que faço contato. Muitas já foram abordadas mentalmente, mas sem sucesso, outras foram reprovadas. A alternativa do anúncio foi para ter maiores chances em divulgar esse novo passo em meu planeta.

- Então, fui aprovada?

- Sim, sem sombra de dúvida! Mas a palavra derradeira é sua.

- Já me decidi. Mas eu queria ver você, falar frente a frente. Este contato mental é bom, porém...

Antes que ela completasse a frase, Ankanop surgia à sua frente.

- Pronto, aqui estou.

Kátia olhou aquele que seria o seu marido. Não era o tipo ideal, o príncipe encantado de seus sonhos de infância. Mas quem se importava com isso? Era o seu marido. Ankanop era a opção de guinada em toda a sua existência. Muniu-se de todo o seu charme e brincou:

- Os gorionanos não deixam as mulheres esperarem!

Ankanop sorriu ao elogio, mas não disse nada, sentia uma especial simpatia por aquela terráquea. Ele começava a pensar que a sua escolha era das mais corretas.

- Katia, você está pronta? E mais uma vez, tem certeza de que é isso que quer?

- Claro, claro. É a chance da minha vida. Não vou desperdiçar. Só peço que você tenha paciência. Preciso fazer algumas coisas, acertar alguns detalhes. Fazer as malas e...

- Quanto à roupa, não se preocupe. Um guarda roupa apropriado de uma gorionana estará à sua espera. - cortou Ankanop.

- Não se trata de roupas. Aliás, algo que eu não pensei foi em fazer malas. O que preciso é escrever algumas cartas, bilhetes, no máximo. Afinal, vou desaparecer da vida de algumas pessoas. Preciso de uma justificativa. E o anúncio, Ankanop, não precisa mais sair.

O gorionano notou uma ponta de ansiedade em Kátia, mas justificou-a pela ocasião.

- Está bem, escreva suas cartas, que eu darei um jeito no anúncio. Ele não será publicado.

Ankanop evaporou-se antes que ela esboçasse algum gesto ou formulasse alguma pergunta. E antes mesmo de escrever uma desculpa à sua companheira de apartamento, ele retornara.

- Não precisa mais se preocupar com o anúncio, ele não existe mais.

O bom humor de Kátia era visível.

- Os gorionanos são rapidinhos em tudo?

- Só quando há necessidade, querida! - foi a resposta jovial de Ankanop, percebendo o tom de malícia de sua nova companheira.

- Vou escrever as cartas. Você me aguarda?

- Claro!

Foi concisa e rápida em seus pequenos recados para a amiga e o supervisor. Abdicava de tudo, deixava salários e comissões, roupas e utensílios e segundo suas palavras, "partia para a maior aventura de sua vida". Kátia omitiu todos os detalhes, sem mesmo ter uma idéia dos motivos que a levavam a fazer isso.

Ankanop aguardou pacientemente o desfecho das correspondências. Pegou o envelope destinado ao jornal e sumiu mais uma vez. Seu retorno rápido já não a surpreendeu.

- Deixei a carta na mesa do seu chefe. Amanhã, ele lerá, com certeza.

Kátia encantara-se com a presteza do novo "marido".

- Ankanop, estou pronta.

As últimas sílabas de sua frase foram pronunciadas dentro da nave. Ankanop sentou-se à frente dos complicados comandos, acionou os botões e a nave partiu rumo a Orion.

Todo namoro ou compromisso precipitadamente decidido, às vezes cai em contradições complicadas. Kátia não perguntou, nem quis saber de muitos detalhes, mas mesmo que indagasse, seu marido acabaria por omitir a realidade. Ankanop contou muitos fatos da história, da vida, do cotidiano de Gorion. Não fez nenhum comentário sobre o velho ritual de Gorion de eliminar a parceira tão logo ela procriasse. Era a lei de Gorion, e as leis têm que ser respeitadas, normas nunca podem ser violadas, pelo menos em Gorion..

Essa era a principal razão que levara Ankanop ao nosso sistema solar, fêmeas em Gorion e em outros planetas circunvizinhos tornavam-se cada vez mais raras.

Porém, o convívio de Kátia em Gorion seria surpreendentemente longo. E ninguém poderia culpá-la, pois nem mesmo ela sabia ou desconfiava que era estéril.

Roberto Bordin
Enviado por Roberto Bordin em 17/05/2007
Código do texto: T490873