SUPER-HOMENS

Era mais um final de tarde. Uma tarde diferente, especial? Não, era mais um daqueles dias arrastados, cansativos e barulhentos. Cidade pequena, dia abafado, suor no rosto, muitos carros nas ruas cheios de gente louca para chegar em casa de uma vez. Para alguns um dia que foi “só mais um dia” e que, para dizer a verdade, juntou-se a diversos outros empilhados todos no grande armário onde diz: dias que se vão.

Mas não será somente mais um final de tarde “daqueles” para Antônio, Lucas, Pedro e Joca. Tudo isso porque...

Eles vinham pela rua Carlos Gomes, descendo do centro para o bairro, e ao chegarem próximo à sinaleira, alguém avançou o sinal vermelho. Seja quem for, aqueles que vinham atrás também seguiram junto. Antônio bateu de frente em Pedro (e vice-versa), que foi colhido na traseira por Joca. Lucas acertou em cheio o pára-choque traseiro de Antônio. O trânsito parou.

Antônio, Pedro, Lucas e Joca saíram dos seus carros, necessariamente nessa ordem. Lucas empurrou Antônio, esbravejando e pedindo explicações. Joca fez o mesmo com Pedro, que reagiu da mesma forma. Antônio xingou Pedro, que não reagiu. Lucas fitou seriamente Joca, que retribuiu o olhar no mesmo momento em que Pedro já tratava de empurrar Antônio, que esboçava reagir. Olha para frente – Não viu o sinal? – Tá dormindo? – Por que parou? Qual é a tua? Mané! Marreco!

O empurra-empurra entre eles aumentou, ignorando os carros que pediam passagem atrás deles todos. Haviam interrompido duas ruas. Alguns já tratavam de chamar os guardas de trânsito pelo celular. Outros gritavam para que retirassem os carr os da frentee os deixassem passar. Mas não adiantou.

Antônio queria ir às vias de fato com Pedro. Lucas com Antônio. E Joca com Pedro. Lucas avançava em Antônio que recuava. Pedro recuava quando Antônio avançava. Joca voltava quando Pedro ia à frente. Logo, tudo parecia uma dança coreografada. Os movimentos eram semelhantes e tinham quase o mesmo tempo de duração. Frente pra trás, de trás pra frente. Lembrava também algo de capoeira, visto que ninguém se encostava. Por vezes voava um braço aqui, uma perna ali. Realmente estava mais para capoeira, mas alguns diriam que havia alguns passos de frevo. O povo juntou para ver o show inesperado que os quatro resolveram dar no final da tarde de quinta-feira. Apontavam pra eles. Riam também.

Aquilo tudo já durava algumas dezenas de segundos e nada se resolvia. Até que Pedro escorregou e caiu de corpo inteiro, batendo com a cabeça no chão. Imediatamente os outros três foram acudi-lo, demonstrando preocupação. Pedro, orgulhoso demais, irritou-se mais ainda, levantando-se do chão só para cair de novo. Dizia coisas – “Boceis bão mi pacar prur icho” – que ninguém conseguiu entender. O tombo, a batida com a cabeça, deixaram Pedro realmente alterado. Finalmente os guardas de trânsito chegaram e acabaram com o espetáculo. O trânsito voltou ao normal.

Antônio, Lucas, Pedro e Joca estacionaram os carros e foram discutir sobre o assunto em um bar próximo dali, visto que não havia um lugar melhor. Aliás, não havia muito o que discutir, já que os carros praticamente não tiveram prejuízos. Os pára-choques amassaram um pouco mas não chegou a quebrar nada. O barulho foi muito maior que o estrago.

Joca já foi pedindo uma rodada de cerveja – tenho certeza que isso vai ajudar, como dizia Chico Science: “Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficá pensando melhor.”- imagina no final de tarde, completou. Pedro que ainda não havia recuperado todas suas faculdades mentais, balbuciou alguma coisa. Antônio e Lucas concordaram balançando a cabeça positivamente, mesmo não entendendo nada. Houve um pequeno silêncio que só foi interrompido pelo garçon que perguntava: Qual a preferência?

Algum tempo se passou e todos já trocavam palavras. Não eram mais inimigos de ocasião. Muito menos estranhos. Lucas já batia no ombro de Antônio. Pedro, recobrado da pancada na cabeça, apontava para Joca e sorria. Joca retribuía fechando um olho, fazendo o sinal de positivo com a mão esquerda. A direita segurava um copo. Trocavam amenidades. Ninguém mais estava preocupado com o pára-choque de seu carro.

A conversa começou a ganhar corpo. Lucas e Pedro começaram a descobrir diversas coisas em comum, como rock inglês dos anos oitenta e filmes de ficção científica. Antônio e Joca gostavam de esportes e eram membros do Green-Peace Brasil - Pedro descobriu que estudou com Antônio na sexta série. Joca, por sua vez, soube que seu pai e o de Lucas foram muito amigos na juventude.

Antônio e Joca começaram a combinar uma expedição ao rio amazonas. Joca tinha barraca e toda parafernália para acampamento em floresta, tudo negociado pela internet. Antônio possuía bote apropriado para explorar rios, riachos e corredeiras, ainda sem uso. Pedro e Lucas ficaram de ir a uma convenção de fãs de “Guerra nas Estrelas” em São Paulo, além de um show em Porto Alegre da banda “Echo e The Bunnymen”.

Pouco adiante passa pela calçada uma ruiva “estonteante”, chamando a atenção de Pedro que larga um elogio educado, que só a estimula a empinar ainda mais o nariz. Joca concorda com Pedro somente com um arregalar de olhos.

Era possível ver uma aura brilhante em torno daqueles quatro, como dizer... amigos-feitos-à-força. Uma cumplicidade amplificada pela situação de acidente-superado-com-maestria, de gostos estranhos em comum, de conjuntura astrológica favorável. Eram eles espartanos que restaram da guerra? Seriam eles semi-deuses...? Quem sabe super-homens? Talvez eles fossem na realidade somente homens que beberam um pouco de cerveja, álcool que se somou ao anestésico liberado pelo cérebro quando ocorre um acidente.

Sim, ao que fatalmente foi comprovado quando tocou o telefone de Antônio e sua mulher pediu que fosse imediatamente para casa. Aliás ela exigiu, não pediu. Seguido a isso a comprovação quando Pedro levou um safanão na orelha, visto que sua noiva presenciou seu elogio à ruiva, a certa distância segundos atrás. Somado à reprimenda da filha mais velha de Joca por ter esquecido de buscá-la. Ela o encontrou por acaso. Ora, veja, bebendo num bar... cidade pequena, essa.

O que dizer de Pedro? Acabou ficando sozinho e só não tomou mais uma cerveja porque lembrou que sua mãe a esta hora já devia estar brava, furiosa com o seu atraso.

Super homens...

Danilo Hax
Enviado por Danilo Hax em 02/08/2014
Código do texto: T4907325
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