Filtro vermelho
O homem tinha a cara tão carrancuda, que ela vencia os traços finos e longos. A voz era rouca e pesada. Os cabelos ralos e finos, caíam tristemente sobre a cabeça. A bata verde cheia de insígnias ofuscava a visão. Ele então saiu e fechou a porta, deixando o outro com um cigarro aceso nas mãos.
Primeira tragada. Era como sorver seu último gole de vida. Soltou a fumaça lentamente, e observava ela subindo enquanto dançava e rodopiava. Reparou no tom monocromático de cinza que o cercava – e havia cercado a vida inteira.
Ali não se ouvia a sinfonia experimental do caos paulistano, ali ele podia pensar. Porém ali, ele não existia. O número marcava suas costas assim como marca-se um gado para o abate. Ali só existia seu cigarro. A segunda tragada limpava sua mente de todo o passado. Olhou para suas mãos, fixamente.
Com esse cigarro, ele tinha plena certeza de sua libertação e de sua condenação. Ele não tinha mais culpas, nem pretensões nem arrependimentos. Era só ele e o cigarro. Era só ele. Era só. Era.
O cigarro queimou seus dedos. Duas tragadas era tudo o que ele conseguira. O homem carrancudo voltara. Agora com algemas e um cassetete em mãos. Abriu sua porta e não precisou proferir palavra alguma. Ele sabia que deveria segui-lo.
Não importava quantos cigarros ele fumasse, mãos sujas de sangue apenas eram perdoadas se você possuísse insígnias. Seu último pensamento: eu devia ter aproveitado mais aquele cigarro.