NÃO ENTRE SEM CAMISA
Dona Isaura era uma mulher solitária. Vivia num pequeno apartamento em um edifício popular na Ceilândia. De manhãzinha, saía de casa carregando um estojo marrom, de couro surrado, que devia abrigar um trombone ou, no mínimo, um saxofone tenor.
Todos os dias era essa a rotina. Aos poucos vizinhos que se arriscavam a puxar algum tipo de conversa, quando perguntada sobre a sua atividade, respondia que trabalhava em um estúdio onde, na companhia de outros artistas, tratava de executar os arranjos que músicos e cantores levavam para as gravações.
Suas ligações com a vizinhança não passavam de um “olá!” ou “bom dia!” meio espremido entre os dentes e sem expressão facial que sinalizasse para uma aproximação maior ou para algum outro tipo qualquer de conversa.
No edifício, não queria intimidades com porteiro, encarregado ou outros serviçais. Não tinha faxineira, lavadeira, passadeira ou outra pessoa para lhe auxiliar na faina doméstica. Fazia a própria comida e cuidava das pequenas tarefas de uma dona de casa como qualquer outra.
Curiosamente, D. Isaura não tinha o hábito de freqüentar qualquer loja do comércio local. Quando vinha da rua, com seu indefectível estojo, já trazia o necessário para as frugais refeições a que se habituara, por conta de um diabetes tipo dois. Assim mantinha o controle sobre a enfermidade.
D. Isaura era de compleição franzina e não fosse um defeito congênito em uma das pernas, nada de diferente deixaria transparecer. Havia nascido com uma espécie de atrofia na perna esquerda o que fazia com que essa fosse mais fina do que a direita, do joelho para baixo. Era, praticamente, desprovida da panturrilha dessa perna o que, no mínimo, era estranho, mas sem qualquer dificuldade para se locomover.
As candinhas do lugar nada tinham a falar ou comentar sobre a vizinha, em virtude de nada saberem a seu respeito, a não ser que era instrumentista e que trabalhava em um estúdio de gravação.
Apesar disso não ser nada normal para uma mulher da sua idade, também não era de causar estranheza. Era a voz corrente: Dona Isaura era uma instrumentista. Afinal, nas orquestras sempre aparecem muitos músicos já idosos.
No passo lento, mas decidido, de quem sabe o que quer, Dona Isaura seguia a pé, de casa até ao ponto do ônibus, desembarcando na Rodoviária do Plano Piloto.
Ali, calmamente, ia se desembaralhando dos encontrões, no meio daquela fauna que transita pelos saguões e, sorrateiramente, se enfiava em um dos reservados do w.c. feminino, no Conjunto Nacional.
Solitária, e contando com a cumplicidade do lugar, D. Isaura abria o estojo do instrumento e dali retirava, calmamente, um par de muletas canadenses e um vestido preto, com florzinhas brancas, que lhe descia pela cabeça abaixo. A bainha terminava nas imediações do joelho, deixando à mostra a diferença entre seus membros inferiores, o que lhe destacava o grotesco.
Esse detalhe do vestuário seria imprevisível em se tratando de alguma outra mulher na qual fossem proeminentes a vaidade, a estética ou o complexo.
Tirando esse ponto destoante, D. Isaura ainda preservava uma silhueta apreciável e, por incrível que pareça, dos joelhos para cima, nada ficava a dever às “teúdas e manteúdas”, como dizia o José Cândido de Andrade no seu “O Coronel e o Lobisomem”.
Olhando bem era apetitosa e atraente, muito embora todos esses dotes ficassem ofuscados, propositalmente, pelo tal vestido preto com florzinhas brancas.
Apesar dos dotes ocultos, ninguém nunca ouvira falar de homem na vida da mulher. Olhares indiscretos da vizinhança nunca puderam flagrar algum gesto, ou olhar mais aquecido para nenhum ente de calças compridas ou barbas... Aquilo era um verdadeiro desperdício.
Calmamente, após dar alguns toques na caracterização, desgrenhava um pouco mais os cabelos e saía do reservado, apoiando-se nas duas muletas, arrastando a perna amofinada.
Como se estivesse representando em um gigantesco palco, D. Isaura confundia-se com os demais “artistas”. Ali pululavam operários, funcionários públicos, gente do comércio, vendedores ambulantes, meninos de rua, mendigos, meretrizes, veados, consumidores, traficantes e gente, de todo o tipo, na mais democrática promiscuidade do Distrito Federal.
Fingindo deslocar-se, com sacrifício, D. Isaura vazava todo aquele ror de gente e, vitoriosa, atravessava, na faixa de pedestres, o asfalto negro da rua, quase em frente ao palácio do consumismo, o Conjunto Nacional.
Junto ao balaústre do pontilhão já se postavam todos os tipos de camelôs, desde os vendedores de guarda-chuva, passando pelos vendedores de frutas, até aqueles que vendiam amendoim torrado, cocadas, quebra-queixos e pés-de-moleque.
Dona Isaura já tinha o seu lugar perpétuo. Era bem ao lado de um camelô que vendia “CDs” piratas, exibindo, sem pudores, as fotos escancaradas da Bruna Surfistinha, do Kid Bengala, da Vivi Fernandes, da Regininha Poltergeist e outras do “Cinema Adulto”.
Ali, bem à margem daquele caudaloso rio de gente, Dona Isaura cuidava de se ajeitar.
Estendia um pano felpudo no chão, denotando algum sacrifício, sentava-se na calçada, rente à balaustrada e depositava, de cada lado do corpo, uma das muletas. De mãos estendidas, com feições de sofrimento, encarava os passantes pedindo “uma esmola pelo amor de Deus!”
Era muita gente que passava por ali Uns saindo do Conjunto Nacional em direção ao CONIC e outros no sentido inverso; a maioria, apressada, estabanada tentando correr mais rápido do que o próprio tempo.
Outros passavam distraídos na antecipação da felicidade do ter. Iam comprar seus objetos de desejo, a garantia da satisfação egóica e, até mesmo, de uma certa dose de poder.
Mas, um considerável número de pessoas, principalmente aquelas que se aboletavam nas bancas ou barracas mais próximas ao lugar em que se encontrava D. Isaura, assim como uma boa quantidade de passantes, demonstrando sentimento de caridade, deitavam algumas moedas nas mãos da pedinte que, mais tarde, voltaria à cena como a instrumentista do estúdio de gravações.
Um pouco mais adiante, ao lado do vendedor de CDs, havia uma senhora gorda que vendia, ao mesmo tempo, calcinhas e cuecas que se misturavam como a atiçar os sentidos dos passantes.
As calcinhas, de cores e feitios instigantes, funcionavam como imãs atraindo homens e mulheres para a compra alentando as mais veladas fantasias. Dentre elas, a maioria ostentava frases sensuais ou desenhos sugestivos...
Já pela tardinha, ao diminuir o fluxo de gente entre os dois grandes prédios e a Estação Rodoviária, D.Isaura, sugerindo certa dificuldade, levantou-se e retomando o apoio sobre as muletas, dirigiu-se à banca da mulher gorda que já estava iniciando o recolhimento da mercadoria e se pôs a escolher algumas para seu próprio uso.
A dona da barraca indagou se as peças se destinavam a algum momento especial, ao que D. Isaura assentiu com a cabeça, reforçando com um sorriso maroto! Pra lá de especial, minha filha!... Em seguida, escolheu algumas e uma com uma inscrição até bem humorada.
Calmamente, com expressão de satisfação, despediu-se dos companheiros de jornada e retornava com seu estojo onde guardava uma sacolinha com a féria do dia, as muletas, o pano felpudo e a marmitinha em que trazia o almoço do dia.
Deixando o banheiro da Rodoviária, inverteu a operação matutina voltando à fantasia do mundo música. Com seu estojo que agora abrigava o pano felpudo, as muletas e a sacolinha com a féria do dia, mais de cento e cinqüenta reais.
A se considerar esse tipo de féria diária, D. Isaura “faturava”, com seu expediente, por mês, cerca de três mil reais. Nada mal num país onde a maioria esmagadora dos trabalhadores ganha um salário mínimo ou um pouco mais que isso.
Dessa vez, D. Isaura desviou seu curso da direção do ponto do ônibus para Ceilândia. Rumou para a orla da calçada e atravessou a rua em direção ao estacionamento que, a essa altura, já estava se esvaziando.
O carro se destacava dentre os outros pelas lanternas acesas. A porta se abriu e D. Isaura acomodou-se ao lado do motorista, dando-lhe um beijo prolongado.
Mal o outro recuperava o fôlego e D. Isaura foi logo dizendo: Querido! Hoje tenho uma linda surpresa para você! Mas não vou dizer nada, agora! É para você ver com os seus próprios olhos!
O carro deixou o estacionamento e tomou o rumo da EPIA. Ao chegar à confluência dessa via com a EPTG, entrou à direita e rumou para a entrada de um motel.
Mozart espichado na cama pegou o telefone e chamou a portaria pedindo dois lanches, de acordo com o número quinze do cardápio. D. Isaura tomava seu merecido banho deliciando-se com aquela chuveirada de água morna e reconfortante.
Ansioso por saber que tipo de surpresa a mulher lhe havia reservado, Mozart esperou até que a porta do banheiro se abrisse.
Enrolada na toalha, Isaura postou-se diante da cama dizendo, carinhosamente: Veja querido! A surpresa que reservei para você!
Lentamente, diante do amante, desenroscou-se da toalha mostrando-se seminua. Estava só de calcinha e, nela, a inscrição:
“NÃO ENTRE SEM CAMISA!”.
Em seguida, atirou-se sobre Mozart, abraçando-o, sussurrou ao seu ouvido: É só brincadeirinha, seu bobinho! Pode entrar sem camisa, sim! Hoje é seu aniversário! Né?
Mozart era o camelô que vendia os CDs pornô. Nunca havia visto um violino de perto e nem sabia quem era o Mozart. O nome lhe havia sido dado por um padre do asilo para órfãos em que fora criado.
Nunca ouvira falar no músico. Mas tinha uma tara sentida naquela perna fina da mulher...
Amelius
Sobradinho-DF- 03/09/2010