A FESTA
Existem aquelas vezes em que a torcida é tanta que o impossível se realiza, mas esta não era uma delas. O Agenor conseguiu chegar ás dezenove horas em ponto, ô pontualidade maldita, estacionou seu fusca 73 em frente a minha casa e como de costume, ralou o pneu traseiro na guia, e vendo aquela demonstração de perícia automobilística, me veio na cabeça, “graças a Deus que é um fusca”. No momento em que ele saiu do carro cumprimentei-o da maneira mais gentil que conhecia, já mandei-lhe a “puta que pariu”, o mesmo me devolveu a gentileza com igual tom cortês. Entramos no carro e depois de uns cinco minutos tentando fechar a bendita da porta, partimos rumo ao calvário.
Agora pode-se imaginar que estávamos indo para a ”gandaia” numa sexta-feira a noite, ledo engano, fomos convidados, ou melhor intimados a comparecer a uma festa social em um clube requintado da cidade; até ai nada demais. Porém, a festa era da empresa onde trabalhávamos. Veja se não existe coisa mais chata que isto, quando é um evento informal, churrasco, futebol, cerveja e churrasco novamente, pode-se suportar, mas em traje de gala é de lascar. Sinceramente, penso que os grandões fazem este tipo de coisa para demonstrar o quanto somos proletariados e que não temos a minima chance de atingirmos o nível deles. No caminho , o meu companheiro foi indagando se estava bem vestido e eu respondia a todo questionamento com um sim semi-serrado entre os dentes; como se um sujeito com um metro e sessenta e cento e dez quilos, que mais parecia um monstro saído de um seriado japonês, pudesse estar bem dentro de um smoking. Minha paciência já ia pras cucuias quando finalmente chegamos ao local, entregamos o carro ao manobrista que com certeza se matou para guiar a jabiraca até o estacionamento, isso se não encostou no ferro-velho mais próximo xingando até o papa pelo transtorno. Ao entrarmos no saguão demos logo de cara com uma loira toda de vermelho, ela era uma dessas modelos que fazem esses bicos para tirarem alguma grana extra no fim do mês, tinha aquela beleza agressiva que nos é imposta pela mídia burguesa e de brinde trazia um sorriso que mais parecia estar tatuado em seu rosto. Sem muita embromação lhe demos nossos convites que logo nos indicou o salão principal, juro que pra mim ela dizia com seus olhos verdes “bem vindos ao inferno”. Ao chegarmos as portas do purgatório, tive a impressão de que rico adorava gastar para ostentar, mas gosta de gastar um pouco mais só para nos humilhar. O lugar estava simplesmente cheio do bom e do melhor, até meu companheiro, que assim que conseguiu tirar os olhos de cima da loira, ficou estupefato com tamanha pujança. Neste momento uma questão me assolou, onde diabos iriamos ficar, visto que os convites só nos reservava a entrada e nem sequer trazia um mapa das mesas; porém uma vez na boca do leão, qual não foi nossa sorte ao perceber que já haviam solucionado este pequeno inconveniente. Ao olharmos para os convidados já assentados notamos que existia uma tênue divisão de escalão. A diretoria estava reunida num canto a direita, seguindo-se logo por gerentes, encarregados, lideres e por fim , terminando num aglomerado mais numeroso à esquerda onde deveríamos nos juntar, ou seja, a boa e velha plebe. A turma toda estava lá, alguns com as respectivas patroas, outros já tinham em quem se escorar, excetuando-se eu, Agenor, Cleber e o Cláudio, foi meio engraçado quando o Cleber levantou o pescoço fazendo uma panorâmica em busca de carne nova para o abate, mas logo notou que ia ser meio difícil fisgar alguém, especialmente pelo fato da mulherada interessante estar acomodada no setor capitalista. Ai levanta-se a seguinte questão: Onde estava o mulherio solteiro do nosso nível? Resposta: Tentando fazer o mesmo que nós.
A demonstração de altruísmo dos senhores feudais rolava numa boa, já tendo servido a entrada e partindo para o prato principal, o Cláudio solta a expressão mais simpática de seu vocabulário “Vai tomar no...” interrompida quando ele viu o olhar de desaprovação da senhora ao lado, é que ele realmente não sabia o que fazer com mais de um garfo e faca, e garanto que muito menos eu e deixei os comentários de etiqueta com o resto da turma. Já ia pelas vinte duas quando decidimos juntar os solteirões para assaltar o bar, nova decepção, os caras não serviam cerveja, logo, tivemos que nos contentar com uísque, gim-tônica e outros destilados que só viamos nas prateleiras dos hipermercados. Conversamos um pouco do que normalmente falávamos no trabalho, percebemos que aquilo era mesmo um circo e fomos nos escorar na amurada que ficava um pouco acima da ala burguesa, nos postamos no local e notamos que os distintos cavalheiros nos observavam com um certo desdém, talvez se indagando se estávamos planejando alguma revolução cubana, o que não passou de mera especulação. Avistávamos do local a pista principal, observávamos a tudo e a todos com uma bela visão da banda contratada, que tocava umas músicas que eu só ouvia em formatura . Como que por sincronismo paramos o olhar em um mesmo ponto do outro lado do salão. Lá encontrava-se uma mulher de estatura média, corpo esguio, trajando um longo vestido preto com um grande decote nas costas, cabelos castanhos escuros meio que preso meio que solto o que deixava seu pescoço um pouco longo, mas não ao ponto de chama-la de girafa, tinha o rosto firme mas debaixo daquele semblante duro e carregado algo me era familiar, impressão que ficou ainda pior quando o Agenor proferiu um nome -”Neide”- O olhei com a cara mais assustada que se pode ter em um momento de horror e gaguejei uma pergunta:
“Quequem você disse que era?” O coitado vendo que eu demonstrava um interesse além do normal, foi logo me alertando:
“Esquece mano, a mina ali é in.”
“In???”
“É in, inatingível, intocável, inexpugnável e principalmente incalculavelmente distante de gente como nós.”
“Mas oque você sabe dela?” Insisti.
“Bem, o que eu sei é que ela é responsável pela área social da empresa, trata direto com presidente e que foi ela que organizou toda essa esbórnia”
Mas não podia ser, havia algo nela que me lembrava alguém do passado, o mesmo nome, o mesmo porte, porém o rosto carregado e marcado me deixava a dúvida que devia ser sanada, indaguei novamente agora sobre o estado civil da moça, respondido sutilmente pelo meu colega:
“ Você tá louco mesmo né ô idiota, mas já que você quer saber, a fulana ali é descompromissada, alguns figurões tentaram grampea-la sem sucesso e só não foi demitida porque ela é muito boa no que faz. E antes que você me pergunte como sei tanto, tá vendo aquela baixinha gordinha sem nariz ali no meio da ala Vip, é a Margarida, ela trabalha de recepcionista no andar da diretoria, além disso é minha prima, foi ela que nos arranjou este emprego.
Não sei oque me motivava, sai de perto da turma e fui em direção aquela mulher, alguém disse ao longe que eu ia me dar mal ou coisa que o valha. Mas aquela maldita dúvida estava me corroendo , tinha de sacia-la, tinha de ser ela, ou não, poxa haviam passado-se quinze anos e mesmo que fosse, será que se lembrava de mim, e se não. Bem, a decisão estava tomada, qualquer coisa era só dizer que era engano e torcer para nunca mais cruzar com ela por aí. Passei por um garçom, peguei duas taças de champanhe, pelo menos notei que ela não segurava nada, esperei ela ficar a sós e de costas para onde me encontrava, assim pude me aproximar dela e dizer oque tinha bolado, é bolado é força de expressão, saiu sem ao menos pensar.
“Espero que quinze anos não a tenham feito esquecer de um velho amigo?”
Ela começou a se virar, tudo dentro de mim tremia, aquela virada durava uns dez minutos, dentro da minha cabeça, é claro, mas foi ela fixar os olhos em mim e fazer uma cara de interrogação que pensei, “diabo, lascou, vou ter de arranjar uma bela desculpa”.Entretanto, o devaneio foi logo interrompido, aquela mulher abriu um sorriso tão lindo que não havia mais dúvida, era a Neide , caramba, era a minha Neide, Ela cobriu a distância entre nós em milésimos de segundo, a noção de tempo fica estranha nestas horas, e me abraçou com tanta força que tive de me firmar para não derrubar as taças.
“Eu não acredito que é você?” disse ela se afastando um pouco.
“Pois acredite, sou eu mesmo.”
“Nossa, a última vez que te vi foi...”
“Foi quando fui pagar uma conta no banco onde você trabalhava.” Interrompi, lembrando do tempo que ela era apenas uma auxiliar de contas a pagar. Bem a conversa se desenrolou como se não houvesse mais ninguém ali. Exceto na hora em que olhei para minha galera e notei uma miscelânea de expressões de espanto, mas foi só por um breve momento, pois eu não sentia aquela alegria e aquele prazer de compartilhar algo tão bom desde a época em que convivíamos juntos, claro que naquele tempo eu nutria uma paixão secreta por ela, mas isso no momento não vinha ao caso, um ruído diferente me fez despertar, a banda começou a tocar uma música velha conhecida nossa e ao som dos primeiros acordes tomei coragem e falei:
“Neide, que tal você realizar um antigo sonho meu?”
“Qual?”
“Eu queria ter a honra e o prazer de dançar com a menina mais linda do colégio.”
Não sei se ela ficou vermelha ou eu estava vendo tudo em tom de rosa, mas quando lhe ofereci o meu braço para conduzi-la à pista, ela simplesmente sorriu e aceitou. Descemos os degraus que nos separavam dos outros casais que já giravam ao som hipnótico, nisso todos os meus companheiros já haviam desabados sentados e abismados com a cena. Nos colocamos de frente uma para o outro, passei minhas mãos pela sua cintura, ela enlaçou meu pescoço com seus braços longos e dançamos até o final da música, mas quando começou a segunda canção, senti que algo havia mudado. Ela voltara a fechar o semblante e com a voz um pouco embargada praticamente sussurrou:
“Sabe, foi ótimo te encontrar, falar dos velhos tempos, mas existem coisas que ficaram no passado, na nossa juventude e que não nos pertencem mais...”
Eu sabia exatamente oque era, pois estava sentindo o mesmo, então cochichei em seu ouvido:
“Talvez na adolescência tivéssemos a impressão de que qualquer sonho era realizável, mas hoje eu percebo que nem o tempo, - a afastei com os braços estendidos – e nem a distancia – a puxei num giro- me impediram de realizar este sonho, aqui e agora.”
Não houve reação e nem sequer um motivo, ela simplesmente me beijou no rosto e disse: “Obrigada” Em seguida me largou no meio da pista e foi embora, era um pouco antes da meia-noite, pensei que ela havia partido, caso contrário viraria abóbora.
Porém a verdade se fez nítida uma semana depois. O Agenor ainda ressabiado e abismado, diga-se de passagem, com o episódio, conversou com sua prima que informou que a Neide havia pedido demissão na segunda feira seguinte a festa. Um mês depois eu estava meio enroscado com um servicinho porco que o Cleber me havia deixado, quando chega o boy da firma com uma correspondência pra mim. Imaginei logo que era a carta de alforria, mas era algo inesperado, ele me entregou um envelope e dentro tinha um postal que na sua foto mostrava uma paisagem urbana e ao fundo a Torre Eiffel, era da Neide, tomei uma certa coragem e fui até meu chefe.
Eu mexi com ela e ela mexeu comigo, hoje estou aqui realizando sonhos, os meus e de outras pessoas, tenho um estúdio de gravação nos fundos da minha pequena livraria onde até o Agenor gravou o primeiro disco do grupo de samba dele, só não sabia que quando ele cantava a voz dele parecia tanto com a da Clara Nunes, mas deixa pra lá. Sob o vidro do balcão está o postal dela, que de tempos em tempos é retirado para que eu possa rememorar as palavras que me trouxeram até aqui:
“Talvez o passado não mais nos pertença, mas não custa nada olhar para trás e tomar algo de volta. Lembre-se os sonhos são realidades que as realidades alheias impedem de tornassem realidades”.
De sua eterna sonhadora NEIDE.
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