SOB A SOMBRA DA MONTANHA

SOB A SOMBRA DA MONTANHA

BETO MACHADO

Ao cabo de mais um dia de trabalho árduo, na colheita de quiabo, leguminosa terrivelmente agressiva, ao contato com a pele humana, o que obrigava os agricultores a se enveloparem com vestes de espantalhos, JOÃOZINHO mal tinha força para pedalar sua “magrela”, inalando a poeira do Caminho do Sebo até o Largo do Guandu. O canto dos coleiros e dos sabiás chamava mais a sua atenção do que os gritos de amigos, vindos de sitiantes ou colonos, doidos para prosear com algum passante conhecido. O máximo de resposta que ele emitia aos amigos era alguns uivos com palavras monossilábicas, repetidas bastante, mas entendidas quase nunca. E ele jurava, quando se encontravam na venda do Veloso para abastecerem seus tanques de “combustível”, que não havia nenhuma palavra obscena naqueles cumprimentos, para muitos ininteligíveis.

O Largo do Mendanha era o Oasis da região. Ali os moradores da redondeza, quase sempre tinham solução para seus possíveis problemas. Para as compras mensais de comestíveis tinha a Venda dos Veloso; para conseguir água potável havia a Bica da Praça do Largo; para energia elétrica tinha a Cabine da Light, que, do Largo do Mendanha, distribuía energia para todos os arredores; para se deslocarem para Bangu saía uma linha de ônibus pela Estrada do Guandu e para Campo Grande saía uma linha pela Estrada do Mendanha.

Eram tempos de grande crueza laboral, mas o vigor físico e espiritual daquela gente, essencialmente rural, induzia qualquer observador visitante daquele recanto a imaginar e acreditar que a Felicidade, antes de se instalar em algumas casas urbanas, teria passado e deixado grande parte de sua tão preciosa carga em muitos lares da roça.

Beneficiado pela parte boa da rotina, aquela que serve, por exemplo, para mitigar os efeitos do cansaço físico, o jovem pai de família, zeloso com o sustento e a educação de sua prole descendente, quase toda noite dava de mão do velho violão, herdado de um tio boêmio e seresteiro e cantava no quintal de casa com os filhos a seu redor. As canções eram aquelas armazenadas na memória afetiva de todas as gerações que ouviram as rádios NACIONAL, TUPI, MAYRINK VEIGA e TAMOYO, emissoras que primavam por difundir a cultura brasileira, priorizando a música e a arte dramática do nosso povo, como as rádio-novelas “A Cabana do Pai Thomaz” e o clássico “O Direito de Nascer”, além das séries: “As Aventuras do Anjo” e o monopolizador da audiência do horário das dezoito e trinta “Jerônimo, O Herói do Sertão”.

O violão de JOÃOZINHO, invariavelmente, mostrava-se desafinado, mas a platéia, a lua lá no céu e sua “renqua” de filhos, espalhados no terreiro, não se incomodavam, nem um tiquinho, se os acordes estavam combinando ou não com o cantar do seu papai. Eles queriam mesmo era aprender a cantar aquelas canções para, quando crescerem, serem reconhecidos como filhos do JOÃOZINHO VIOLEIRO.

A fala de timbre agudo e suave, sem nenhuma pressa para finalizar as frases, organizadas mediante o contato de uma de suas mãos no ombro de seu interlocutor, fez de JOÃOZINHO uma pessoa ímpar; quase unanimidade .

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O velho boteco do Largo do Guandu, nos dias de semana, abrigava sempre a mesma clientela, no início da noite. CHICO DE SANTINHA não era um homem de muita paciência com os “pés inchados”, freqüentadores do seu botequim, quando esses atrapalhavam a sua audição da AVE MARIA, às seis horas da noite, com JULIO LOUZADA, na RÁDIO TUPI. Sua mulher SANTINHA era quem o acalmava e não raro ela trocava de lugar com o marido para que ele pudesse meditar, tranquilamente, no silêncio do seu quarto e fazer suas orações.

Nessa birosca a “magrela” de JOÃZINHO se encostava e bisbilhotava as conversas dos pinguços e do seu dono com a dona do estabelecimento.

Enquanto JULIO LOUZADA prendia a atenção de mais de noventa por cento da população do RIO DE JANEIRO, duas ou três talagadas de conhaque de alcatrão de São João da Barra temperavam um bate papo mais que amistoso que JOÃOZINHO mantinha com SANTINHA antes de prosseguir para casa. A “magrela” não falava nada pra ninguém mas percebia um clima um tanto estranho nos ares do crepúsculo e naquelas duas almas pecadoras por pensamentos, palavras e obras.

Chico rezava literalmente para que chegasse logo o fim de semana. Aos sábados e domingos seus amigos iam buscá-lo para jogar futebol. Era um ótimo zagueiro. Diziam que só não se profissionalizou por falta de empenho nos treinamentos físicos e por causa de uma certa afinidade com bebidas destiladas.

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Nos domingos ensolarados era o futebol que impulsionava a economia daquela região, pequena mas populosa. Inúmeros adolescentes, que já participavam ativamente do orçamento financeiro de suas famílias, aproveitavam a oportunidade para faturarem um “troco”, vendendo laranjas, tangerinas, mangas ao redor do campo do Mendanha F C; muitas dessas frutas eram extraídas ilegalmente de sítios de beira de estrada, inclusive com o conhecimento dos proprietários que faziam vistas grossas quando constatavam serem aqueles atos meio de sobrevivência.

As doceiras e as quituteiras garantiam a sua renda semanal vendendo seus produtos que forneciam a força para os gritos e vibrações dos torcedores do time que era o “xodó” do empresário dono da empresa detentora da única linha de ônibus (S 53) depois (S 50), atualmente (850) que liga CAMPO GRANDE ao MENDANHA. Dentre as razões para torcer incondicionalmente pelo sucesso do Mendanha F C, a que BÉCO GARCIA julgava ser a mais importante era que seu filho Marco Jorge figurava no rol dos artilheiros do time, que se reformulava com o passar dos anos, fato que permite a velha guarda local lembrar com saudades das jogadas de Joãozinho Veloso, de Artur, de Nicinho Professor, de Vadinho Veloso, de Veludo, de Ximbica, de Nico, de Otávio, de Jorginho Dimas, de Trem de Ferro, de Valter Ribeiro, de Vadinho Cedae, de Elias, de Hélio José, de Daniel Boca, de Osmar Rosa ( Jaca), de Mengalvio, de Nélio, de Brasinha, de Serginho, de Paulo Gaúcho, de Paulinho, de Dário, de Paca Véia, de Carretel, de Valter Generoso, de Nel, de Rafael, de Meio Quilo, de Cesar, de Arai, de Araquém, de Maricá, de Marco Jorge, de Gelson, de Julinho e de muitos outros cujos nomes escapam das memórias, mas seus feitos não.

O comércio do Largo do Mendanha se desenvolvia em função das grandes festas juninas, das partidas de futebol aos domingos e dos gritos de carnaval.

Nos dias de carnaval os ônibus da Auto Viação Garcia saíam abarrotados do terminal da Rua Campo Grande, a partir das seis horas da noite. Depois das nove era humanamente impossível chegar ou sair do Largo do Mendanha. Os ônibus retornavam da Rua do Paraibano. A partir daquela quadra os foliões que desejassem chegar perto do coreto, plantado estrategicamente no centro da praça, lindamente enfeitada com motivos carnavalescos os mais variados, ao lado do bicão, protegido com tapumes para evitar qualquer tipo de danos àquele tesouro tão valioso para a população do lugar, teriam que se emaranhar na multidão, absorvendo a alegria tanto da banda com percussionistas, cantores e um naipe de metais quanto dos brincantes de todas as gerações, exibindo fantasias e brincadeiras já não existentes hoje.

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JOÃOZINHO desencosta do balcão ao ouvir o arrastar de chinelos vindo da casa de SANTINHA. Esse era o sinal característico do retorno de CHICO ao salão do boteco, depois de cumprir suas obrigações religiosas, que serviam de terapia ocupacional, visto que, segundo ele, servir cachaça fiado pra pinguços de toda noite e fazer nada é a mesma coisa.

Um vento frio aumentando de velocidade era prenúncio de chuva pro dia seguinte ou praquela noite. A “magrela”, como se quisesse chamar a atenção de JOÃOZINHO permitiu que o vento a deslocasse por mais de cinqüenta centímetros pela parede onde se encostou desde que chegara. O entrosamento dos dois era quase perfeito. A mensagem foi logo entendida. Cinco minutos após JOÃOZINHO e a “Magrela” adentrarem em seu quintal de luminosidade precária mas com sonoridade em alto volume, sua filharada não economizava nem energia, nem brincadeiras: amarelinha; pique lateiro; pique esconde; pêra, uva, maçã; chicotinho queimado; polícia e ladrão; carniça; passar o anel...

A lua, quando cheia, oferecia seu clarão para as crianças pintarem no chão batido do quintal diversas imagens com as sombras de suas próprias mãos. Parecia que aquele generoso astro atendia a necessidade de luz dos miúdos quando os via mergulhando na capineira a catar vaga-lumes. E o prazer da gurizada vinha mais do ato de brincar do que do gozo efêmero de se ganhar, de presente, um brinquedo fabricado e vendido em lojas. Os brinquedos mais amados pelos guris daquele lar pra lá de feliz era o “cavalo de cabo da Vassoura”, as “pernas de pau”, os “cascos de cavalo” feitos com latas de leite Ninho e barbante e a queridinha das meninas: a boneca de pano com um olho só

ISAURA, mulher de JOÃOZINHO, controlava o tempo e as ações das crianças, no terreiro de casa, de acordo com o horário da novela da TV. Entre um “reclame” e outro ela dividia sua atenção com os filhos e com “Os Irmãos Coragem”.

Não se vai dormir muito tarde no ambiente rural porque muito cedo se tem que despertar. Crianças na escola, adultos na lavoura. Essa era a lógica e a rotina da região. Havia, infelizmente, quebrando essa lógica, a utilização da mão de obra infantil, atropelando, muitas vezes, as possibilidades de alfabetização de crianças, precocemente calejadas, por executarem tarefas agrícolas quando deveriam estar na escola.

ISAURA adorava cultivar no seu quintal, penduradas nos troncos grossos das mangueiras, das jaqueiras e dos jambeiros ou em vasos enganchados nas paredes e nas platibandas das janelas, espécies variadas de samambaias, de orquídeas e de outras plantas nativas da Serra do Mendanha. Sempre que percebia a necessidade de reformular ou aumentar seu “jardim suspenso”, admirado pelos vizinhos e visitantes, inventava um belo motivo para suas crianças acompanhá-la na subida à serra: Tomar banho de cachoeira.

As margens da cachoeira do Mendanha servem de berço para a fauna e a flora que se espalham por todo o maciço, mantendo vivo o verdume esplendoroso que encanta os olhos, mesmo daqueles que o fitam a distancia. Mas a delícia do passeio e a salutar caminhada, morro acima, levavam a molecada ao delírio, ávida por chegar e mergulhar nos poções, atravessar de um lado ao outro nos cipós e pegar peixes barrigudinhos e mandis com puçás feitos com folhas de palmeiras trançadas e latas furadas, utilizadas e deixadas pra trás, por outros freqüentadores. As recomendações de cuidados eram passadas por ISAURA aos mais velhos, que exerciam suas autoridades até que ela retornasse com suas bolsas cheias de mudas de plantas. Esses valiosíssimos exemplares eram recolhidos na exuberante vegetação ciliar, protetora do riacho formador da Cachoeira do Mendanha, desde a sua nascente, próximo ao pico, até no pé da serra, onde as habitações começam substituir o verde da paisagem antiga pelo atual vermelho cerâmico das casas de alvenaria.

ISAURA preferia fazer sua coleta na montante da cachoeira, com a consciência de que aquelas espécies teriam um destino garantidor da continuidade de suas existências.

Geralmente essas ações aconteciam nos feriados de comemorações cívicas, aproveitando a folga escolar das crianças. Já nos feriados religiosos a meninada de JOÃOZINHO e ISAURA tinha missões a cumprir na igreja do Guandu. Filhos de católicos fervorosos, o casal de pais zelosos fazia questão de passar para os seus os ensinamentos adquiridos no seio da religião que seguiam desde sempre. Participavam de todas as festas e quermesses promovidas pela igreja. A mais saudosa dessas festas era a de SANTANA, na Estrada do Mendanha, próximo ao Largo das Capoeiras. Caravanas eram organizadas pelos membros das igrejas do Mendanha e do Guandu.

O povo da região era de muita fé. Nos domingos as missas de todos os horários abarrotavam as igrejas. Certa vez se multiplicaram em muitas vezes os pedidos de orações na intenção da alma de uma só pessoa. Carlinhos... Era resultado dos boatos que o menino seqüestrado teria sido visto na serra do Mendanha; outros diziam que ele teria sido devorado por porcos criados soltos nos sítios e na redondeza. A repercussão geral motivada pela super exposição do fato nos órgãos de comunicação, alcançando o exterior, fez com que o Governo Central formasse uma comissão formada de policiais civis, federais e militares do Exército com a finalidade de desfazer as dúvidas e os boatos. A Comissão vasculhou tudo. Não ficou pedra sobre pedra sem ser revirada. Houve uma matança, sem precedentes, de porcos, na quase totalidade dos sítios, a cujos proprietários apenas restou o prejuízo afetivo-financeiro. Mas como a tendência dos boatos é que eles criem tentáculos se expandindo e se movimentando o mais que possam o povo começou a espalhar, à revelia das ameaças dos agentes federais, que CARLINHOS havia sido tragado por uma imensa cratera vulcânica, encoberta por vegetação espessa e quase inacessível. As histórias de vulcão na serra do Mendanha, para muitos ainda são amedrontadoras. Não se sabe se foi por isso, mas as buscas cessaram a partir dessas novas informações. A execução sumária de uma vara de centenas de porcos sadios de cujos proprietários a renda equilibrava a economia local, e por efeito dominó, a estadual e a nacional jamais seria levada em consideração por um governo autoritário, preocupado tão somente em manter a “sua Lei” e a “sua Ordem” para que essas protegessem a “Imagem” e a “Segurança” da Nação.

As ameaças surtiram um efeito contrário. Sempre que os caminhões lonados desciam com os agentes federais grupos de nativos da serra acompanhados por vizinhos do Plano (Mendanha, Guandu, Sebo, Tereré, Sete Riachos) sem nenhum receio, iam constatar o que já desconfiavam. Ossadas de desaparecidos virando adubo orgânico fazendo mais viçosa a floresta, testemunha cega e muda das ações nefastas praticadas pelos gafanhotos travestidos de esperança, mas que deixavam rastros rubros pelas trilhas tortuosas serra acima, serra abaixo.

O menino CARLINHOS não apareceu mas a operação dos camuflados sob a guarda sombria da floresta serviu para dirimir a dúvida dos nativos: Queriam eles descer com o corpo do CARLINHOS ou aproveitar o pretexto para subir com corpos para desovar?

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As previsões de chuva, trazidas pelo vento frio, que se apresentaram para JOÃOZINHO e a “Magrela” lá no boteco do Largo do Guandu, se confirmaram.

As crianças acordaram, não com o clarão alaranjado que o sol costumava colocar no cocuruto da serra, mas com as pingueiras do telhado vertendo tudo que deslizasse sobre as telhas francesas, forjadas na olaria do Pedro Forte. A gurizada mais nova nem esperava pelo chamado da mãe. Mas ISAURA tinha sempre que aumentar o volume da voz e a rispidez das palavras para que os mais velhos não se atrasassem para a escola.

O desjejum da família era acompanhado de aipim cozido ou frito, batata doce, mingau de fubá, café adoçado com caldo de cana, banana de fritar e pão dormido, molhado no café. Com exceção do fubá e do pão , tudo mais era do próprio quintal.

Esse ritual da primeira refeição era observado com rigor, pela matriarca, pois ela trazia a tradição da sua família de origem, tendo ouvido, desde a infância, que “saco vazio não pára em pé”; e para os que gostavam de “remanchear”, empurrando tempo com a barriga se dizia sem nenhuma cerimônia: “café no papinho, pé no caminho”.

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Debaixo de uma insistente chuva fina, JOÃZINHO e a “Magrela” conseguem chegar ao local de trabalho, como rotineiramente faziam. O trajeto foi lamacento e os dribles nas poças d’água aumentaram em alguns minutos o tempo de chegada.

Da porta de seu casebre construído, estrategicamente, no meio da chácara, AZULÃO chama JOÃZINHO. Negro alto e forte, com hábito de pintar e alisar o cabelo, era uma espécie de capataz, cargo criado pelo proprietário TAVITO, com a finalidade mitigar o estigma que qualquer ex presidiário carrega nas costas, mesmo que já tenha pago sua pena, como era o caso de AZULÃO.

JOÃZINHO põe sua “Magrela” a salvo da chuva e corre, pulando as leiras que aguardavam o plantio de verduras ou de legumes, e chega à casa de seu encarregado. As saudações são do modo mais irreverente possível. A amizade dos dois ultrapassava as raias do tempo e da hierarquia. AZULÃO dava direito de escolha ao amigo. Sua prateleira, posta propositalmente, atrás da única e precária porta, estava sempre repleta de garrafas de bebidas destiladas. A queda da temperatura e a chuva não permitiam nenhuma recusa de convite para beber. JOÃZINHO preferiu o conhaque. O anfitrião tombou na goela uma dose caprichada de uma branquinha conservada em vasilhame escuro e sem identificação. Segundo ele era segredo de estado.

O tempo dá sinal de que vai melhorar. Começam chegar outros trabalhadores. Cada um já sabia da sua tarefa, estabelecida por AZULÃO no dia anterior. Uns iam pra colheita de alface, de repolhos e de Berinjelas, que eles apelidavam de jilós graúdos; Havia os responsáveis pelas arrumações dos produtos, já lavados por outros, nas caixas de formatos específicos. A única tarefa que cabia a todos era a de acomodar da melhor maneira possível as caixas sobre as os caminhões e amarrá-las.

TAVITO, pra demonstrar sua satisfação com a produção de seus empregados, reservou um bom pedaço de terra, perto da casa principal da chácara e fez um campo de futebol para o lazer dos comandados de AZULÃO.

Quem passasse pelo Caminho do Sebo em frente à chácara de TAVITO, no horário de almoço dos “mineiros da horta”, parava para se divertir com o “show” de futebol de circo, praticado pelos “meninos do TAVITO”, como eram chamados pela vizinhança.

Semestralmente TAVITO preparava um de seus caminhões com bancos e suporte para lona de capota e partia para Tombos de Carangola, sua cidade de origem, no interior de Minas Gerais. O objetivo da viagem era a busca de mão de obra para as atividades agrícolas na sua chácara do Mendanha. Seus parentes de lá, faziam uma espécie de cadastro onde a chance da partida para o Rio de Janeiro obedecia a uma fila e a preferência era pelos casais sem filhos, independente da idade. Mas o casal tinha que provar disposição para o trabalho duro da roça. Tinha até casais menores de idade que vinham com a bênção e o consentimento dos pais.

Havia, nessa época, uma espécie de aceitação velada a certos atos, que hoje são considerados pedofilia, desde que a vítima fosse assumida pelo infrator, casando ou se amasiando. Esses atos, invariavelmente, produziam uma precoce adultificação das adolescentes vitimadas, em detrimento das suas necessidades para o desenvolvimento natural de seus corpos e mentes.

Os casebres foram construídos nos limites do sítio, e observavam uma distancia de, aproximadamente, duzentos metros entre si. Perfazendo um total de onze, aquelas construções causavam a impressão, nos passantes, de serem pequenos silos ou casinhas de colméias de abelhas. Porém, por mais incrível que pareça, havia felicidade habitando ali. A expressão facial daqueles sorridentes mal nutridos ratificava isso.

Num espaço diminuto, preenchido por seres amantes e de cumplicidades recíprocas e algumas bugigangas e uma satisfação imensurável, expressada por casais que respiravam liberdade dentro de um barraco, mais parecido com uma cela, a felicidade entrava sem pedir licença e ficava ali até que a finitude interferisse no rumo da história.

Nas folgas dominicais dos que não estavam escalados para trabalhar na feira, “os meninos de TAVITO” aproveitavam para conhecer trechos, do lugar, ainda não vistos. Saíam agrupados pela estrada do Mendanha, Caminho do Ceará, Guandu do Sena, Sete Riachos e retornavam pela estrada do Lameirão ou pelo Caminho do Tereré. As vezes faziam outras rotas. Iam do Caminho no Sebo pela saída próximo da serra e subiam e desciam até o Largo do jenipapo, de onde só saíam depois de entornarem quase todas as Rezendes, Pitus e Praianinhas no boteco do Rozinha, à beira do campo do Serrinha FC. O retorno era sempre, evitando mais subidas, pela estrada do Pedregoso, Caminho do Encanamento até a estrada do Mendanha. A caminhada era o bastante para reduzir o grau alcoólico da cuca dos “mineiros da horta”. Quando chegavam ainda sob a luz do dia, se integravam ao grupo que já havia retornado da feira de Campo Grande. O “futebol de circo”, cujas regras primavam por não ter regras no jogo, o que remete esse narrador a se recordar do saudoso e polêmico personagem “CARLINHO SEBOSO”, cuja trajetória teve como base a periferia do campo do SIPEK FC, depois SÃO PAULO FC... A quem lhe conferia a responsabilidade de apitar uma partida de futebol ele alertava: “Só apito lateral, escanteio, tiro de meta e gol. Futebol é pra Homem”... A brutalidade exibida e repetida, a cada lance, pelos “meninos do TAVITO”, no campo de futebol, produzia uma agradável reversão de expectativa naqueles que mantinham qualquer tipo de interação social com algum deles, depois de assistir aquele espetáculo medieval.

JOÃOZINHO recomeça sua tarefa interrompida no dia anterior: a cata de quiabos. Ele se especializou nessa função, o que levou AZULÃO a deixar por sua conta esse serviço que era odiado pelos “meninos”. Camuflado como um gafanhoto, por entre as fileiras do vasto quiabal, que só perdia em produção diária para o da chácara do MIRIM, também situada no Caminho do Sebo, JOÃOZINHO apenas parava sua catação para almoçar e no fim do expediente. No verão, auge da colheita, empilhavam-se entre quinze e vinte caixas de quiabos, diariamente, a espera do carreto para o Mercado S. Brás, no centro de Campo Grande, para as feiras e para o recém criado Ceasa, na madrugada seguinte.

Por ser um trabalho muito estafante ninguém entendia como é que JOÃOZINHO, após despender tanta energia durante o dia, na roça, ainda tinha vontade de tocar violão e cantar para os filhos no quintal de casa, à noite. A explicação estava implícita nas ações dele, mas esta precisava ser explicitada. Prazer... Era porque sentia prazer em tudo aquilo que fazia.

Outro grande prazer de JOÃOZINHO era receber em sua casa a FOLIA DE REIS. Todo mês de dezembro a família se preparava, ansiosa, para a recepção daquele tradicional evento cultural e religioso pagão. A criançada adorava as travessuras do PALHAÇO. Seus saltos, pulando sobre as cercas vivas que separavam os quintais das ruas e dos vizinhos, as cambalhotas, as tentativas de amedrontar os pequeninos com o aspecto feio de sua máscara e, principalmente, a declamação de versos com temas engraçadíssimos com mentiras e com verdades. Como estes:

---Minha mãe me deu uma coça

Com uma vara de marmelo.

Antes era de corrente,

Até que eu quebrei um elo,

Sem precisar de serrinha,

De talhadeira ou martelo.

Só usei somente os dentes,

Depois que a tal da corrente

quase me estourou os bagos

E entortou o meu pinguelo

Risca o fole, sanfoneiro!!!!!!!!!!!

E depois de mais cambalhotas e galhofadas com as crianças prosseguia improvisando:

---Meninada desta rua,

Se liga em tudo que eu digo.

Melhor que um mar de dinheiro

É um punhado de amigos.

Amizade a gente guarda

Longe de qualquer perigo,

Pois padeiro só faz pão

quando não lhe falta o trigo.

Trisca, belisca e não petisca, sanfoneiro!!!!!

O PALHAÇO era um exímio controlador do tempo das ações da folia. A palavra petisca usada na mensagem ao sanfoneiro era a senha para os donos da casa, que chegara a hora do lanche da turma. Lanche, que, na casa de JOÃOZINHO e ISAURA mais parecia um banquete, tamanha era a variedade de guloseimas e bebidas oferecidas aos foliões e a seus seguidores.

Como num piscar de olhos, JOÃOZINHO viu seus filhos, um após outro, empenujando os queixos e contornando os bigodes. As mudanças dentro da própria casa não são perceptíveis de modo a se antecipar aos observadores externos. As meninas já caprichavam mais nos penteados, o que passou a chamar a atenção dos “gaviões”, ávidos por presas novas. ISAURA, atenta aos novos comportamentos das filhas, as alertava insistentemente.

JOÃOZINHO adorava comemorar aniversário de alguém da família com cantoria entre amigos. Numa dessas festas apareceu um pandeirista de nome NESTOR, levado por FARIAS, grande amigo de JOÃOZINHO. O pandeiro era dominado de tal forma pelas mãos de NESTOR que a platéia desviava sua atenção, antes dada ao cantor, para o percussionista. Ele realmente roubava e cena. E seu sucesso não tinha como causa tão somente a bela execução de seu pandeiro. A fisionomia daquele exímio músico desviava os olhares femininos, não para o seu instrumento musical mas, para seus longos cabelos negros e lisos, que o assemelhava a um guerreiro indígena.

NESTOR era dono de uma pequena oficina de conserto de refrigeradores situada na estrada do Mendanha. Cansado de esperar um resultado positivo dos anúncios colocados nos classificados de um grande jornal, a caça de mão de obra especializada para compor seu quadro de empregados, resolveu trabalhar com aprendizes e obteve grande avanço em relação aos concorrentes.

JOÃOZINHO aceitou o convite para trabalhar na oficina, a título de experiência, como aprendiz. Gostou tanto e aprendeu tanto que, depois de alguns anos, virou sócio da firma.

O novo modelo de gestão implantado, corajosamente, por NESTOR, criou filhotes concorrência a fora. A nova ordem, nas pequenas empresas, era criar sua própria mão de obra.

O mercado de trabalho havia se contaminado pelo “vírus da especialização”, sem que houvesse uma resposta por parte do poder público no que concerne à educação do ensino técnico. NESTOR redescobriu a pólvora; recolocou de pé o ovo de Colombo.

A mudança de atividade de JOÃOZINHO era motivo de comentários em todas as rodas de amigos, nos botecos do Guandu e do Mendanha nas beiras de campo de futebol e até nas conversas pós-saídas das igrejas. A estupefação aparecia estampada no rosto dos que trabalharam com ele nas lavouras, num passado tão recente que lhes custava muito à crença que um homem rude, sem muitas instruções escolásticas, como JOÃZINHO, pudesse, de catador de chuchu, de quiabo e de jiló, virar um técnico de refrigeração, com registro em carteira e ganhando três vezes mais do que recebia na roça.

Os filhos de JOÃZINHO se encantaram com a nova profissão do pai. Alardeavam, orgulhosos, na escola e na rua, com os amigos. O mais velho, aos dezesseis anos surpreendeu a família, numa noite de proseada costumeira, depois do jantar, comunicando que no dia seguinte se apresentaria numa oficina de refrigeração para trabalhar como aprendiz.

JOÃZINHO não conseguiu evitar que seus olhos marejassem, tamanha a alegria proporcionada pela notícia. Deu um forte abraço no primogênito e, após os já característicos afagos sobre a cabeça, passou-lhe todas as dicas que possibilitavam um bom aprendiz transformar-se num bom profissional. E vaticinou: “Primeiro tem de ser um bom aprendiz”.

Os anos se passaram e a história de JOÃZINHO se repetiu com o filho.

Clientela se multiplicando nas duas oficinas concorrentes entre si, e a principal causa desse fenômeno demorou ser identificada pelo patrão do filho de JOÃZINHO. Enquanto que NESTOR já sabia o porquê de tudo aquilo, tanto que já se preparava para abrir uma filial em outro bairro, deixando à frente da nova loja o filho do sócio.

ISAURA já não ostentava, nessas alturas, a alegria de outrora pra subir a serra do Mendanha, justo no momento que aumentavam as necessidades do uso e da ingestão de ervas medicinais.

Corria na região um “andaço” de “sarna” e de “tiriça”. Tantos foram os banhos de “carobinha”, de “arnica” e de “aroeira” que as duas primeiras quase foram extintas do lugar. Apenas a “aroeira” é facilmente encontrada, tanto na serra quanto no plano, devido às semeadoras sabiás de cujos excrementos germina a continuidade dessa valiosíssima planta.

Por pertencer a uma espécie de vegetação que escolhe para se fixar um determinado lugar que concentre o seu desenvolvimento a erva “carobinha” só era encontrada no pé da serra do Mendanha, próximo ao campo de futebol do PUEIRAL FC.

A procura foi de tal forma crescida que os vendedores de ervas, estabelecidos nas feiras, nos mercados e fornecedores das casas especializadas nesse ramo, começavam a dificultar os acessos àquela área. Foi quando surgiu Caminho da Carobinha, depois Estrada da Carobinha, hoje Rua Carobinha. Uma reta de mais ou menos um quilômetro de extensão ligando a margem direita no sentido Campo Grande da Avenida das Bandeiras, hoje Av. Brasil, na altura de Santíssimo, cortando a Estrada Sete Riachos, descendo até bem perto do pé da serra do Mendanha.

Esse Caminho propiciou a descoberta de algumas rezadeiras, até então, anônimas criaturas que viviam numa precariedade material de dar dó, mas o alto astral dessas senhorinhas abençoadas era de causar inveja. Para elas que vivam de doações dos adoentados de quebrantos, de males de pele, de ossos e até de mente, pois não aceitavam dinheiro em hipótese alguma, “viver só com o que é de precisão afasta a tristeza e atrai o bom humor, a alegria, o prazer de viver”- dizia TIA BAZINHA, mulatona dos cabelos de algodão, beirando os oitenta mas com vitalidade e esperteza de uma cinquentona.

Os filhos de JOÃOZINHO e ISAURA passaram incólumes ao longo do período em que essas doenças afetaram grande parte da população do lugar. Todavia, ISAURA, muito mística, visitava TIA BAZINHA quase semanalmente pra conversar, pra pedir uma reza que tira mau olhado e pra trocar pacotes de produtos comestíveis por frascos de água benta e óleos que ela usava e ainda cedia para vizinhos que necessitassem.

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Passadas algumas décadas, hoje JOÃOZINHO e ISAURA colocam suas cadeiras de balanço na calçada de casa, quando a tarde entrega o bastão do rumoroso dia para o silêncio da noite, a espera dos netinhos vindos de suas casas, sempre menos pra visitá-los do que pra comer do bolo de fubá feito com um ingrediente extra que a vovó carinhosa jamais esquece de acrescentar à receita original: AMOR... E eles vão chegando um a um... Beijinhos nos rostos dos avós e a clássica pergunta: "Vovó, fez bolo"?

Roberto Candido Machado
Enviado por Roberto Candido Machado em 24/07/2014
Reeditado em 16/08/2014
Código do texto: T4895369
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