328-EIÔÕÕÕÕÕ. SILVER!-Memórias da Infância:gibis
Manhã de férias do meio do ano. Em São Roque da Serra, encravada nas montanhas do sul de Minas, os dias geralmente eram nublados, frios, úmidos. O que não impedia que os garotos da Rua Dr. Sotero se reunissem diariamente para jogar bafo, pião, finca, peteca ou bola. Ou combinar uma escapada para nadar no poço do Buracão. Para ler e trocar gibis, ou então, ficar sentados nos degraus das portas da venda do Seu Abdala, em conversas sem fim.
Por rara exceção, aquela manhã estava diferente: sol morno, pouco movimento de carros na rua de chão vermelho. Tendo jogado bafo durante boa parte da manhã, passaram para os gibis. Seu Abdala aparece na porta com o porte alto e imensa pança dominando definitivamente o cenário.
— Areia, Areia! Saiam da porta, estão atrapalhando os fregueses.
Implicância pura, não tinha viva alma na rua nem na venda. Os meninos obedecem à ordem.
Os que estão na porta sentam-se na calçada. As revistinhas aparecem em todas as mãos. São proibidas dentro de casa, pois as histórias em quadrinhos são consideradas violentas e da sua leitura os meninos se transformarão em bandidos. É o que dizem os pais de Tonico, conceito generalizado naquela época.
— Olha, tenho um gibi novo do Zorro. Quem quer trocar? — Tonico exibia uma revista diferente.
— Não é gibi de verdade. — Benito, que mora defronte à venda, denuncia.
— É a Revistinha Zorro. Tem uma aventura bacana. — Exibindo o exemplar de apenas quatro páginas, Tonico insiste na troca.
Havia inúmeros tipos de gibis, que chegavam à cidade (e às mãos dos pequenos leitores) através do Alfredo Jornaleiro. Vendia jornais de porta em porta e revistas nas sessões do cinema, já que nem banca de jornal existia em São Roque da Serra, naqueles tempos. Benito tinha muitos exemplares do Globo Juvenil, que vinham todas as semanas, enviados pelo pai, comerciante em São Paulo. Exemplares de Gibi Mensal, O Guri, Lobinho, Globo Juvenil Mensal, O Tico-Tico, Gazeta Infantil, circulavam entre os garotos. Era a década ‘940, a era de ouro dos quadrinhos, quando importantes editoras se dedicavam exclusivamente à edição de gibis. Roberto Marinho e Adolfo Aizen liderando as edições, rivalizando-se na direção das duas maiores editoras de revistas do gênero.
Tonico apareceu com a “Revistinha do Zorro”, diferente. Recebia pelo correio, como membro do Clube do Zorro, promoção do sabonete Palmolive e do creme dental Colgate.
— Tem uma aventura do Zorro completa, aqui no jornalzinho. — Tonico insistia em trocar a minguada revistinha por um gibi comum, que tinha 80, 100 páginas.
— Não vale, Se tivesse mais folhas...— Zezinho compara o gibi de cem páginas com a oferta do amigo.
— Então, espera aí! — Tonico corre até sua casa, que fica no meio do quarteirão, e volta, trazendo um maço de “Revistinha do Zorro”.
— Aqui tem onze revistinhas. Quem quer trocar?
Logo faz negócio com Danglar, que lhe dá um Guri em troca dos pequenos jornais.
Zorro era um dos heróis mais controversos dos gibis. No começo, havia a dupla Zorro e Tonto. Versão de The Lone Ranger, o Cavaleiro Solitário que cavalgava seu indômito cavalo branco Silver, e que lançava, nos momentos mais emocionantes da história, ou no final feliz, o grito clássico:
— Eiôôôôô, Silver!
Usava uma máscara carnavalesca, tapa-olhos preto, escondendo quase nada de seu rosto inexpressivo. Seu companheiro era um índio pele-vermelha, que pouco ajudava o herói. Aventuras no velho oeste, no deserto das Montanhas Rochosas, entre pioneiros, pistoleiros e índios. Diligências com arcas cheias de dinheiro e minas de prata, apareciam em quase todas as aventuras.
Existia um outro Zorro, disfarce de Dom Diego, um nobre habitante da Califórnia, nos tempos que aquele pedaço de chão ainda era dos espanhóis. Bom espadachim, tinha um chicote de longa tira, com o qual marcava os bandidos, traçando, numa ágil chicotada, a letra Z no peito dos malfeitores derrotados.Usava também uma máscara, uma simples tira de pano sobre os olhos, mas a roupagem era toda negra, inclusive o cavalo. Suas aventuras eram muito mais emocionantes que as do Cavaleiro Solitário.
Toniquinho saiu satisfeito da troca com Zezinho do Otávio. Esse, por sua vez, também estava contente com o pequeno negócio. E assim, entre leituras das aventuras dos heróis mascarados e troca de gibis, a gente crescia em cultura e na arte de negociar.
EIÔÔÔÔÔÔÔ, SILVER!
ANTONIO GOBBO –
BHTE, 18-FEV-2005
CONTO # 328 DA SÉRIE MILISTÓRIAS