Êxodo
Êxodo
O sol ainda parecia preguiçoso ao levantar por detrás das colinas das bandas do Caverá. Seus raios, esmaecidos pela neblina que se erguia aos poucos, ajudavam a secar o capim forrageiro que teimava em vencer a friagem de inverno. Sempre foi assim. Nem tudo, porém, era como antes. O galo não cantou naquela manhã. Mas Teomilda ainda podia ouvir o canto dos pássaros enquanto olhava para o alto da colina, como sempre fazia, sentindo o cheiro de relva molhada e o perfume das laranjeiras antes de ordenhar Bitoca, sem maneio. Já fazia anos que Bitoca não precisava mais dos tentos de couro crú a prender-lhe as patas. A interação entre a simpática vaca Jersey, de tons pardos e docilidade infantil, com sua dona, chegava ao limiar da cumplicidade. Teomilda chorava. Os olhos marejados da velha senhora de rosto vincado e pele curtida pelo sol, olhavam o seu mundo por detrás de uma cortina úmida de lágrimas. Mudanças não eram bem vindas.
Os campos de criação cobertos de pasto nativo, a pequena lavoura de milho e a horta que ajudava na bóia, faziam parte de seu dia a dia desde criança. Tempos difíceis tinham ido e vindo. Tempos bons e prósperos também. Foi uma infância feliz, lidando com as galinhas, brincando com as ovelhas, correndo em meio as macegas para se esconder dos irmãos nas tardes de brincadeiras. Teomilda foi crescendo, se tornou moça. Conheceu o Zé, filho do Joca da tenda de troca nas domingueiras da igreja. Olhares furtivos e risinhos acanhados fizeram parte da aproximação. Tradição, família, ingenuidade e malícia em doses ajustadas: anos bons, filhos, trabalho. Porém, tempo passando, coisas mudando.
Seu Joca Tardo, dono do sítio do Lago Grande, que, mesmo aposentado já há muitos anos, se mantinha na propriedade e, diziam alguns, por puro prazer, chegaria ainda no início da manhã. Era uma visita indesejada. O sucesso de seu Joca não era a realidade da maioria dos vizinhos de Teomilda e Zé Cardoso. Muitos já tinham se ido. O primeiro foi o compadre Honório, mudando para a capital no ano em que o velho Décio despencou do sinamômo. Depois, meio sem aviso, dona Júlia e seu Nerso também se foram. E assim foi acontecendo, gente se indo. No dia anterior, um caminhão levara para longe o lote de galinhas e o casal de porcos que garantiam o alimento e alguma renda. A visita que estava por chegar era o golpe de misericórdia. Teomilda não tinha dormido naquela noite e a vermelhidão em seus olhos denunciava o sofrimento. Lembrava o único filho que também um dia, já há tempos, tinha se ido em busca de alguma coisa que ali não havia mais.
O casal de trabalhadores da terra queria que ele fosse gente. “Quem sabe se torna um dotô?” Seu Joca, por fim, levou Bitoca. Quase nada mais restava. O velho casal também saiu, abraçados e carregando seus poucos pertences em trouxas feitas de lençóis, pela porteira de madeira tosca com dobradiças enferrujadas e endurecidas que teimavam em não se mover, como se quisessem impedir a partida de quem tinha ali o coração. Uma última olhada, já do lado de fora da propriedade, serviu apenas para apertar um pouquinho mais aquela dor fininha e engrossar o nó na garganta.
“Vai ser uma vida nova, minha velha”. Dizia Zé Cardoso, num quase sussurro junto ao ouvido de sua mulher, em vã tentativa de alegrar a companheira e a si mesmo. Na estação rodoviária, pequenina, acanhada, pouco mais que um velho armazém, eles aguardavam em silêncio. O ônibus monobloco que há tanto tinha levado o filho querido, agora levava uma tristeza imensa que lutava para virar esperança. A viagem não demorou muito. A poeira da estrada de chão foi logo dissipada quando os pneus gastos e avermelhados do velho ônibus tocaram o asfalto. Em poucas horas já estavam instalados, de favor, numa pequena casa nos fundos do terreno do compadre Galvão, no morro da Palhoça. Peça única, tudo bem juntinho. Mas... era um teto. O dia, finalmente, se foi. Cedeu lugar a uma noite longa e dolorida, sem sono. Horas depois, como sempre, surgiu o sol anunciando o novo dia. O galo não cantava naquele lugar, zuniam balas. E Teomilda, com os olhos tristes, olhava do alto do morro, sentindo o cheiro forte da fumaça dos carros e do esgoto que corria a céu aberto, para um mundo que não era o seu.