314- SUMIÇO DE LURDINHA
A mãe acorda de manhã e não vê a filhinha, de quatro anos, no pequeno leito ao lado de sua cama . Pela dúbia claridade do dia ainda por amanhecer, nota, antes mesmo de ver com clareza, a ausência do corpo miúdo da menina.
— Zeca, acorda! — Sacode o marido com violência, já tomada pelo desespero. — Roubaram a Lurdinha.
— Hein! Que foi? — Zeca revira-se no seu lado.
— A Lurdinha sumiu! Roubaram nossa filha!
— Cê tá louca? Vai ver, ela levantou, foi no banheiro.
— Não, ela não saiu não. Tenho certeza.
Zeca levanta-se de supetão, arredando com um lance o lençol, a colcha e o cobertor, que se amontoam no meio da cama do casal. Chega até a cama pequena da garota, mexe nos lençóis e cobertores, procurando a filhinha. Não encontrando, agacha-se para procurar debaixo da cama.
— Vai ver, caiu da cama enquanto dormia. — Grita: Lurdinha! Lurdinha!
Sob a cama da Lurdinha está uma porção de malas e caixas de papelão, além de um pequeno urinol e alguns brinquedos. A casa é pequena, no quarto só tem um guarda-roupas e os badulaques, a tranqueira, está “guardada” em caixas de papelão, malas velhas, que ficam sob as camas. A caminha fica encostada na parede, de forma que bastou Zeca olhar pela beirada de fora e verificar que a menina não caíra da cama enquanto dormia.
— Veja na cozinha, no banheiro. — Afobado, manda Bruna, a mulher, que já chora o sumiço da filha. Agacha-se do outro lado da cama de casal, passa a mão entre as malas e caixas empoeiradas.
Aqui não está. Santa Mãe de Deus, onde está essa menina? Grita novamente
— Lurdinha, Lurdinha. Cadê você?
Bruna volta da sua inspeção pelo resto da casa. São só quatro cômodos: sala, quarto, cozinha e banheiro, parcamente mobiliados. Zeca é motorista de ônibus e o que ganha mal dá para pagar o aluguel e a comida. Por isso, foi fácil a procura.
— Não tá em lugar nenhum aqui dentro. — Bruna se esparrama sobre a cama, soluçando alto. Zeca veste com rapidez a calça e a camisa, não se incomoda com os sapatos.
— A porta? A porta tá fechada?
A mulher não responde. Ele corre até a sala, verifica que a porta está trancada. Também olha todas as janelas, o vitrô do banheiro, a porta do quintal. Tudo fechado. Sai para o quintal, procura evidências de arrombamento. Nada. O portão da rua também está fechado. Volta para dentro da casa. Nervoso, depara com a mulher chorando sobre a cama.
— Vamos, Bruna. Vamos procurar mais. Procura mais aqui dentro de casa, que vou falar com os vizinhos.
O dia clareou de todo. Zeca saiu, bateu nos portões da vizinhança, dando notícia do desaparecimento da filhinha. Nenhum vizinho vira a menina nem ouvira nada de estranho, durante a noite.
O pai volta para casa, depressa.
— Vou pedir pra telefonar pra polícia no telefone da padaria. — Sai de chinelos, o cabelo desgrenhado, o desespero instalado dentro de si. Deixa Bruna vasculhando o guarda- roupa — É o único lugar em que ela pode estar escondida.
Zeca corre até a padaria. Na afobação, engasga ao relatar o ocorrido ao seu Manoel. Pede-lhe que faça o telefonema.
O padeiro deixa os fregueses e vai ao telefone. Está a discar o número da polícia, quando chega Bruna, também desgrenhada, em chinelos e camisola, com a filhinha no colo.
— Não carece telefonar não, seu Manoel. Eu achei ela!
Na volta para casa, o desespero de Zeca vai se transformando em aborrecimento e chega a ficar com raiva da menina.
— Que negócio é esse? Onde que essa pivete estava escondida?
— Tava escondida não. Ela virou na cama, e caiu pelo lado da parede. A caminha ficou afastada um pouquinho só, foi por onde ela caiu. E a gente não podia mesmo ver a Lurdinha, no meio das caixas, das malas e do piniquinho.
— Como é que cê achou ela?
— Ela acordou quando bati a porta do guarda-roupas. Começou a gemer e chorar.
Enquanto retornavam à humilde casa, Zeca foi ficando cada vez mais brabo. Com ele, com a mulher, com a menina, com aquela situação toda.
— Vocês nem imaginam o que me aconteceu, depois que eu saí daquele lugar escuro e terrível. — É a própria protagonista da história, dona Lurdinha, que conta para os filhos.
— Seu avô Zeca ficou tão brabo, mas tão brabo, que, quando chegamos em casa, me aplicou umas boas palmadas. Como se eu tivesse tido culpa do desaparecimento.
ANTONIO ROQUE GOBBO —
23/NOVEMBRO/2004
CONTO # 314 DA SÉRIE MILISTÓRIAS