O andarilho

...A velocidade com que ele estava indo beirava os cem quilômetros por hora, sua gargalhada ribombava dentro do carro como uma trovoada de verão. Após cada gargalhada vinha em comentário jocoso e ofensivo:

_Otário! Babaca!

Eu e o banco do carona fazíamos parte da mesma matéria. Quem disse que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço? Eu me afundava cada vez mais, sentia o gosto do couro na minha boca, tal era a osmose que ali se apresentava, até porque eu estava pelado.

_ Só um otário dá carona hoje em dia! Não se pode confiar nem na mãe da gente, quanto mais em um desconhecido!

Silenciosamente eu concordava com todos os comentários, amedrontado, acuado, como um cão após levar uma surra do seu dono. Ali estava eu, despido de todas as roupas e de todas as virtudes, um covarde em pêlo.

As curvas da estrada eram feitas quase sem usar os freios. Era uma viagem para a morte. Aquele homem não tinha nada a perder, talvez estivesse buscando a oportunidade de suicídio e queria levar alguém com ele. Estava embriagado, drogado, seus olhos estavam vidrados na estrada, apesar de perceber que sua mente dava voltas distantes e incontáveis.

Não conseguia expressar nada, tal era meu medo. Na verdade, sempre fui um covarde, sempre fugi de tudo e de todos, sempre fui um solitário. Minha mente também dava voltas. Relembrando todo o meu passado, minha infância pobre, a ausência de pais, o orfanato, os estudos, o casamento forçado, os filhos indiferentes.

Uma luz enorme vinha em nossa direção, o carro deu uma guinada, foi até o acostamento, passou por sobre uma lajota, a porta se abriu e fui arremessado para fora como uma bala de canhão. Caí numa ribanceira, rolei no matagal e bati com a cabeça em uma árvore. Escutei um grande estrondo, como se minha cabeça tivesse explodido, ecoando por milhares de quilômetros. E dali tudo se apagou.

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Precisamos que você viaje até Joaçaba para tratar do contrato com a empresa Extra mil. Eles estão nos aguardando amanhã às 14h00.

_ Pô só agora você me avisa? Quase cinco da tarde?

_ Não posso fazer nada. O chefe mandou cidadão!

Aquele jeitão dele sempre me enervou. Cidadão. De onde ele tirou essa expressão? Dos subúrbios, dos morros ou dos discursos políticos?

_ Já solicitaram minha diária? Reservaram o carro? Hotel?

_ Vai à luta cidadão!

Eu poderia socar-lhe o nariz, mas preferi ficar na minha. Lá fui eu em busca das informações perdidas, como sempre, na firma era essa zona. Alguém mandava e você que se virasse atrás das coisas. Não sei pra que secretária, ou um setor administrativo não fazia diferença.

_ Karla. Viajarei amanhã pela manhã. Passarei na locadora e de lá já vou pegar a estrada. Ok? Reserva minha diária e a hospedagem, pois não quero dirigir a noite. Partirei no outro dia pela manhã e a tarde já estarei por aqui.

_ Certo seu Onofre. “xà” comigo!

Sua forma de mascar chicletes e suas maneiras um tanto quanto desleixadas aumentava minha depressão. Enfim dei um suspiro profundo e fui pra casa.

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A tristeza que me abatia quando eu pisava na porta da minha casa era algo digno de um suicídio. No entanto, eu procurava manter as aparências. Minha esposa, vítima de uma noite alucinante de embriagues, pariu dois monstros incontroláveis e insanos.

Jota, o monstrengo mais novo, era um dicionário ambulante de palavrões. Seu nome era Josepe, sugestão de seu tio materno, italiano, mas não muito culto.

Marlúcio (vê se eu mereço?) era a aberração mais velha, relapso, mal educado e preguiçoso.

Ambos, crias do mimo, da indiferença e da ignorância de seus pais, principalmente sua mãe, (não querendo escapar da responsabilidade), mas, nesta casa, nunca tive vez ou voz, sempre fui ignorado.

Nunca fui pai, ou marido, ou companheiro, ou amigo, ou sei lá o que. Durante dezesseis anos saia do trabalho e ia para casa me enfornar no quarto e viajar nos meus livros.

Morgana era o nome da fera, casou comigo talvez porque não via mais alternativa no alto dos seus 28 anos. Eu (um idiota perfeito) deixei-me iludir por um par de coxas e seios.

Quase duas décadas de casamento, ou algo semelhante. Brigas, traições, indiferenças, ressentimentos e todo o tempero ruim que estraga qualquer comida. Fui criado em um orfanato. Saí aos dezoito anos. Trabalhei muito. Aos 21 consegui um emprego em uma editora, onde estou até hoje como diretor Executivo, ganhando razoavelmente bem.

Mas eu não era feliz. Principalmente no que diz respeito a família. Nunca tive muitos amigos. Era um solitário, tendo como companhia apenas livro e mais livro.

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_ Ta indo pra onde companheiro?

Tinha lá seus quarenta e tantos anos, um pouco mais velho do que eu, vestia calças jeans surradas e uma camiseta dois números menor, salientando a melancia que carregava no abdome. Tomava uma média com leite, e mastigava parte do que seria um misto quente. Típico caminhoneiro, acostumado com as estradas e seus bares encardidos.

- Joaçaba. - Respondi, fitando meu copo de café como um perfeito idiota.

- Estou com meu caminhão quebrado a dois quilômetros daqui. Vim ver se conseguia um mecânico, mas ele só pode ir amanhã. Preciso voltar pro possante, pois deixei minha esposa e meu filhinho de dois aninhos, sozinhos e estou preocupado. Você pode me dar uma carona até lá?

Claro. Resmungou meu coração. Contrariando o cérebro que dava cambalhotas de contestação.

Dez minutos depois vi o brilho de uma pistola, um sorriso meio de lado e três palavras inocentes, mas totalmente convincentes:

_ Pare o carro!

Ele pegou toda a minha roupa, ficou com a jaqueta de couro e meus sapatos, jogando todas as outras no mato. Verificou minha carteira e a enfiou no bolso da sua calça.

_ Senta aí no banco do carona, e fica de boca fechada. Vamos dar uma voltinha, depois eu te deixo num lugar seguro.

Provavelmente no meio do mato com a boca cheia de formigas. Pensei. Tremendo de frio e de medo.

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Acordei com gosto de sangue na boca. Minha cabeça doía até quando eu pensava. O corpo todo dolorido, mas parcialmente sem fraturas, como não acredito em milagres, tive muita sorte, pensei.

Ali estava eu, pelado, sujo de sangue e barro em um lugar desconhecido. Subi a ribanceira cambaleante, cheguei à estrada. Deveria ser tarde da noite, pois estava tudo deserto. Andei um pouco, tremendo de frio. Cheguei a um casebre na beira da estrada que parecia uma boate. Como não tinha segurança, entrei porta adentro.

Um homem, provavelmente o cafetão, e uma prostituta, únicas pessoas daquele lugar, que conversavam sentados a uma mesa nos fundos daquela que em dia foi uma sala de visitas, olharam-me aturdidos, quase não acreditando no que viam. Um homem barbudo, barrigudo e pelado. A mulher, meio que automaticamente, veio em meu socorro.

_Foi assalto?

Consenti, apenas balançando a cabeça. Ela me levou para um quarto. Tomei um banho, coloquei uma roupa que havia sobre a cama.

_Não tenho dinheiro algum! - Admiti, envergonhado.

_ Sem “pobrema”, da próxima vez você paga.

Fomos para a “sala de visitas”. O homem me ofereceu um copo de cerveja, perguntando-me o que havia acontecido.

Antes de começar a falar, vi pela janela, ao lado, da boate, um carro quase totalmente destruído, queimado de ponta a ponta. Conferi a placa. Era o mesmo carro que eu havia locado. Meio atordoado perguntei o que houve, apontando com a ponta do queixo para aquele monte de lata carbonizada.

_ Bateu numa carreta de frente e pegou fogo, o motorista um tal de Onofre, foi o que deu no jornal, morreu “qui” nem carvão.

Espere aí, pensei, Onofre sou eu. Será que...? É claro, aquele desgraçado estava com minhas roupas, minha jaqueta de couro e todos os meus documentos, tinha quase a mesma idade que eu e quase o mesmo biótipo. Acharam que era eu. Provavelmente a carteira com meus documentos não queimou totalmente, o que serviu para identificar-me.

_ Você tem o jornal?

_ Vou ver se acho - disse desconfiado e já aparentando certa irritação.

Era uma reportagem pequena, com fotos do carro carbonizado, e um corpo, ou algo semelhante, coberto por um lençol, anunciando: “Ultrapassagem perigosa gera mais uma morte no trânsito. Onofre Feitosa foi a vítima dessa vez!”. Não tinha nenhuma foto minha. O que foi um alívio.

Um grande clarão veio em minha mente. Taí a porta para minha liberdade. Tudo o que sempre sonhei. Sair por esse mundo, totalmente isento de compromissos, de responsabilidades, de chateações, de mesmices e de rotinas.

Que fiquem com meu seguro de vida, com a casa, com o carro. Dane-se aquela vida oca e insípida.

Deixei meus interlocutores na mesa, fitando-me sem entender nada. Voltei ao quarto, no banheiro raspei a barba e o cabelo com um aparelho de barbear. Pulei a janela e ganhei a estrada.

E lá fui eu para minhas futuras andanças, sentindo o coração palpitando de excitação, a alma trepidando de satisfação, a mente carregada de idéias e nem sentindo as mãos totalmente vazias...

Hélio Cabral Filho
Enviado por Hélio Cabral Filho em 18/07/2014
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