306-POR UMA CANETA TINTEIRO-Memória

POR UMA CANETA-TINTEIRO

Luciano viu a caneta tinteiro na vitrine da Casa Estrela quando voltava da casa da professora. Vinha lampeiro e feliz, pois ela elogiara o rascunho do “discurso de formatura”. Como orador da turma, competia-lhe escrever e, se possível, decorar o discurso. Fizera o rascunho com a ajuda do pai e agora Dona Leonor iria fazer correções, e, como ela mesma prometera, “se possível, melhorar”. Como estava linda! Os sentimentos de Luciano para com a professora primária eram especiais, diferentes da simples admiração de aluno pela mestra. Era muito mais, incompreensível ao garoto de onze anos. Se eu pudesse ser seu namorado. Mas ela é casada, e o marido dela parece ser muito brabo.

Caminhava célere.As pernas curtas de um menino franzino davam passadas miúdas, pois estava com pressa de chegar em casa e falar com a mãe e o pai do elogio de dona Leo-nor. Ao passar pela Praça da Matriz, parou de súbito, atraído pelo brilho dos objetos expos-tos na vitrine da loja do velho Giovani Stela. Relógios, muitos relógios, de diversos tipos. Jarras de cristal, pratos ornamentais de louça. Uma máquina de escrever no centro da arru-mação. Brinquedos caros, alguns livros e miudezas de papelaria.

Os olhos de Luciano dirigiram-se diretamente para a meia dúzia de canetas-tinteiro. Por diversas vezes, nas ocasiões anteriores em que fora à casa de Dona Leonor, por diversos pretextos, já tinha visto as canetas expostas na grande vitrina. Enquanto admirava a coleção de canetas e procurava ler as marcas — Parker, Estherbrook, Rosebud, Johann Faber, fazia comparações, analisava cada qual de acordo com sua preferência.

Nem notou quando o proprietário, seu Giovani, aproximou-se e parou ao seu lado.

— Então, garoto, namorando as canetas?

Luciano levou um susto. Tinha sido surpreendido em seu devaneio.

— Estas canetas...são muito bacanas. Quanto custam?

— Têm diversos preços. — O velho italiano quase não tinha sotaque, e sua voz, grossa, profunda, vindo do alto de seu metro e oitenta, chegava forte até o garoto. — A-quela Parker ali, está vendo? Custa cinqüenta cruzeiros.

— Muito cara...

— Sim, mas tem essa que está mais perto do vidro, custa apenas trinta e cinco.

— A marca é...Esther...Esther...

— Estherbrook — O italiano não falava bem o inglês, pronunciava estér-bróque, e assim Luciano aprendeu o nome da caneta de que mais gostava. — Veja, tem diversas co-res. De qual você gosta mais?

— Gosto mais daquela verde.

— Venha aqui dentro, vou lhe mostrar como ela funciona — Convida o simpático lojista.

— Num adianta, não posso comprar. Não tenho dinheiro. — Luciano está envergo-nhado de ter parado para ver as canetas na vitrine. De certo ele vai querer me vender uma, de qualquer jeito. Entretanto, acompanhou o velho, entrando na loja.

Era um palácio maravilhoso aos olhos de Luciano. Estantes de livros, as prateleiras inferiores com alguns de histórias para crianças. Uma parede lateral estava literalmente ocupada por objetos de vidro, louça e metais: copos, jarras, enfeites, flores artificiais, um mundo de coisas coloridas, brilhantes. Num largo balcão todo de vidro estavam os relógios. No fundo, outro local maravilhoso: a papelaria, com cadernos, caixas de lápis de cor e, na-turalmente, as canetas-tinteiro.

Dois fregueses estavam sendo atendidos por uma senhora gorda, alegre e por uma mocinha que falava baixinho. O dono da loja abriu a porta do armário das canetas, tirou toda a coleção, que estava montada em um suporte de madeira, e começou a mostrar ao garoto o funcionamento de cada uma delas.

— Esta aqui é a Parker. Funciona assim. — O velho, com seus dedos grossos, ia manipulando delicadamente o mecanismo de abastecer a caneta com tinta. — A Esther-brook é diferente. Tem de puxar essa alavanquinha aqui na lateral. — Luciano acompa-nhava, embevecido, as explicações de seu Giovani. — Então, de qual você gosta mais?

— Esta esterbróque verde. Gosto mais dela. Mas já falei, não posso comprar, papai não me dá dinheiro.

O velho olhou com simpatia para o garoto.

— Eu te conheço. Você é filho do seu Pedro, aquele marceneiro do Lavapés. Posso vender fiado.

— Num adianta. Nunca que papai vai aceitar. Ele anda muito doente, não pode pa-gar.

Recolhendo subitamente a coleção de canetas, o dono da loja vira as costas e coloca de volta as canetas no armário. Luciano aproveita e vai saindo da loja. O homem,entretanto, o chama quando ele está quase na calçada.

— Espera aí, garoto. Ainda temos que conversar.

Luciano se volta.

— Olha, estamos perto do Natal e o movimento aumenta, aqui na loja. Vou precisar de um garoto assim como você para fazer entregas, dar recados, coisas assim. Se quiser trabalhar na loja, nas suas férias de fim-de-ano, pago com uma caneta-tinteiro. Aquela de que você gosta. A esterbróque verde.

— Não sei se posso. Vou pedir pro papai.

Ao chegar em casa, esperou a hora do almoço para falar com o pai e a mãe.

— Acho até bom você encontrar o que fazer durante as férias. Assim, não fica zan-zando por aí, fazendo artes. — O pai concordou logo. — Quem sabe ele te emprega como caixeiro?

A mãe, temerosa de tudo e de todos, vacilou:

— Mas ele é tão pequeno. — Dirigia-se ao marido, numa voz trêmula. — Vai que ele deixa cair alguma coisa de vidro, aí o prejuízo...

— Pára com isso, Berenice! Luciano é esperto. Mas vamos esperar ele receber o diploma do grupo, então vou falar com seu Giovani.

No dia seguinte, na hora do recreio, Luciano ficou na classe, enquanto os colegas iam para o pátio. Dona Leonor mostrou-lhe então as correções e os adendos que havia feito no seu discurso.

— É melhor você passar a limpo, fazendo todas as emendas. Pode ser escrito a lápis, fica mais fácil de apagar com a borracha onde for preciso corrigir.

— Se eu tivesse uma caneta-tinteiro, eu escreveria melhor.

Em seguida, sem esperar qualquer comentário da professora, Luciano falou da con-versa com seu Genaro sobre a caneta-tinteiro estérbroque e a proposta de trabalho.

— Mamãe não quer, mas papai já me deixou trabalhar na loja em troca de uma ca-neta-tinteiro.

Chegou o dia da formatura. A “festa” foi um sucesso. Realizada no Cine Recreio, lotado de gente até nas galerias. O discurso do orador da turma, lido por Luciano (não deu para decorar tudo) foi muito aplaudido. Depois, falou o paraninfo, Dr. Soares, com sua voz retumbante. Dona Leonor também fez um pequeno discurso, interrompido diversas vezes pelas lágrimas. Houve premiação dos alunos que tinham as melhores notas — e Luciano não estava entre eles. A entrega dos diplomas. Tudo muito emocionante, não só para os meninos e meninas que recebiam o “Certificado de Conclusão do Curso Primário” , como para os pais, professores, diretor e convidados.

À saída da cerimônia, no grande saguão do cinema, os cumprimentos. Pais e alunos, professoras e a diretora, abraçando-se e conversando animadamente. Dona Leonor aproximou-se do canto onde estavam Luciano, seu Pedro e dona Berenice.

— Parabéns, Luciano! Seu discurso esteve ótimo! — O abraço da professora foi a coisa mais prazerosa que ele já sentira em toda sua vida. Ela levantou-o do chão por alguns momentos e ele se engasgou, sem saber o que dizer.

— Eu...Eu... — Sentia as faces quentes, vermelhas. Passou rapidamente as mãos sobre os olhos, para limpar as lágrimas.

— Olhe, tenho esta lembrança para você. — Ela tirou da bolsa um pequeno embru-lho, entregando-o a Luciano.

Ele desamarra com presteza o fitilho e abre o embrulho. Aparece uma caixa retangu-lar, chata, de cor escura. Tem um delicado fecho de metal, um botão pequeno, que ele aper-ta.

A tampa se abre, revelando o presente: uma brilhante caneta-tinteiro Estherbrook verde-esmeralda.

ANTONIO GOBBO –

BH, 28 / SET / 2004

conto # 306 da série MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/07/2014
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