RETRATOS DE UM DIA COMUM

"Essas palavras que escrevo me protegem da completa loucura".

(Charles Bukowski)

Abro os olhos, desperto. Encontro-me deitado de bruços em minha cama com os braços esticados ao longo do corpo, permaneço estático por alguns minutos, percebo que adormeci vestindo camisa, calça e meias. Ainda sem me mover, lanço um olhar analítico sobre o quarto até onde a vista pode alcançar, observo a porta fechada, a estante com meus objetos pessoais em cima, a pequena televisão e uma garrafa de bebida ao lado, o quadro emoldurado na parede, o travesseiro acima da minha cabeça e o telefone celular. Estico uma das mãos para alcança-lo, olho para o visor, são quase nove horas, é sábado.

Procuro me erguer para conseguir sentar na lateral da cama, e à medida que executo esse movimento minha cabeça parece pesar uma tonelada e gira sem parar, a boca tem um gosto amargo, a visão fica embaçada, começo a suar frio e uma ânsia me sobe pelo estômago, minhas mãos tremem, é uma vertigem insuportável. Estou de ressaca. Agora sentado à beira da cama com as mãos segurando a cabeça e os cotovelos apoiados nos joelhos, fito meus pés que pisam o pequeno tapete vermelho no chão, fico olhando pra eles por longos minutos.

Estabilizo-me um pouco, então me lembro de ter tomado várias doses de vodca barata na noite passada, pois não estava conseguindo dormir, olho para garrafa rapidamente e vejo que seu conteúdo está um pouco abaixo da metade. Recordo-me também de ter tido outro pesadelo terrível, ultimamente eles estão se tornando cada vez mais frequentes, parece que querem me dizer algo ou talvez seja simplesmente frutos da minha mente cansada e perturbada, não sei.

Relembro bem que a coisa toda foi bastante desesperadora. Era eu caminhando por entre árvores numa trilha de mato rasteiro em um lugar desconhecido, lembrava uma grande chácara, era quase noite, eu usava calça jeans, sapatos e estava sem camisa, parecia desnorteado, até que encontro uma piscina, fico andando devagar ao seu redor, aproximo-me da beira, olhando fixamente para o fundo da mesma, quando de repente caio na água, não sei ao certo se eu havia me jogado ou se alguém pudesse ter me empurrado, sentia uma presença por perto, mas não via ninguém, provavelmente eu mesmo teria me lançado da borda. Então deixo meu corpo seguir lentamente até atingir o fundo, e no momento em que tento retornar a superfície, parece que sou agarrado por braços invisíveis que não me deixam subir de volta, eu luto com todas as forças, me debato, tento me desvencilhar, mas é em vão, não posso gritar não posso chamar por ninguém e já não posso mais segurar a respiração, o folego está se esgotando, meu desespero é total, não consigo voltar, parece que um poder de natureza demoníaca me mantém preso ao fundo, nada pode ser feito, podia sentir que ia me afogar, é o fim, pensei, eu vou morrer, então respiro a água, pareço perder a consciência de tudo que estava acontecendo nessa hora, tudo desaparece, tudo ao redor se torna esbranquiçado, foi no exato momento em que abri os olhos e despertei agora a pouco.

Levanto a cabeça, olho novamente para a estante que está a minha frente e vejo meu pequeno caderno de anotações aberto, estico uma das mãos para alcança-lo, o pego, percebo que iniciei um texto nele, mas não me recordo de ter escrito nenhuma dessas palavras na noite anterior, sei que fui eu, porque é a minha letra grafada na página. Por certo fora feito de forma inconsciente no auge de minha embriaguez noturna. É o início de um poema que diz:

Não adormeças

Permaneça resistente como sempre foi

Como sempre fomos

Obstinados e loucos madrugada a fora

Não me abandones

Se afastando cada vez mais e me deixando solitária

Nessa noite de pedras

Nessa noite imensa e ensandecida

Desesperada na tempestade assustadora

Perdida em meio a sombras e trovões

Envolva-me em sua chuva acolhedora

Insira-me em seus sonhos que caem como chuva de estrelas

Não me deixe não me deixe...

Solto o caderno em cima da cama, levanto-me com certo esforço, olho pela janela e vejo alguns operários de uma construção qualquer se protegendo da chuva que cai rala e preguiçosa lá fora, há pouca movimentação de pessoas na rua em que moro. Tiro a roupa amanhecida do corpo, pego uma toalha e vou até o banheiro, ligo o chuveiro e fico debaixo, deixando a água fria cair sobre minha cabeça por um longo tempo.

Saio do banho com a toalha enrolada na cintura, vou até a cozinha, mastigo um pedaço de pão dormido que estava em cima do fogão, abro a geladeira, pego uma garrafa com água e bebo diretamente no gargalo, eu praticamente a esvazio, estava sedento, deixo-a sobre a pia, retorno a geladeira e pego uma caixa de leite quase vazia, então bebo o restante do líquido que ainda havia, descarto a embalagem, agora totalmente seca, no lixo da cozinha. Apanho meus cigarros e o isqueiro de cima do armário, puxo uma cadeira pra perto da porta, me sento e acendo um cigarro, fico outros longos minutos fumando e observando pela saída dos fundos a chuva que ainda cai fina e monótona. E certa melancolia me invade ao ver toda essa atmosfera enfadonha e pessimista desse lugar. Logo penso, desejando que talvez uma catástrofe natural, como aquela da bíblia, fosse ideal para dar jeito a esse tedioso momento.

Meu celular toca no quarto, vou busca-lo, é um amigo, atendo:

- Fala Branco.

- E ai Jones, o que tá fazendo?

- Nada de mais, em casa apenas, por quê?

- Vamos dar um pulo no centro hoje, vai ter uns eventos culturais na estação das docas, a gente pode tirar à tarde pra fica por lá vendo a movimentação, que tu achas?

- Beleza. Te encontro por lá, umas quatro horas, ok?

- Fechado.

Já é meio-dia, ando pela casa, tento organizar algumas coisas, mas é impossível a bagunça é generalizada aqui, acendo outro cigarro, entro no quarto, pego o cinzeiro de cima da estante e me deito novamente na cama, à medida que fumo os cigarros, passo a meditar em algumas coisas que estão acontecendo em minha vida, em certas escolhas que fiz e suas inevitáveis consequências das quais terei de enfrentar. Penso no meu emprego de mais de dois anos que abandonei há cinco dias para poder viajar e tentar ganhar a vida no sul do país. Penso arrasado, no meu filho de três anos que irá crescer sem a minha presença, na falta e transtornos que causarei a ele com essa ausência, nesse vazio que de fato, assim como eu, ele também sentirá com tudo isso. Imagino a possibilidade de um dia poder voltar para tentar recuperar o tempo perdido e assim contribuir de alguma forma para o seu desenvolvimento e maturidade, mas provavelmente já será tarde demais, e é sempre muito ruim quando é tarde demais.

Pego o controle da TV e a ligo, troco de canais mecanicamente tentando achar alguma programação que possa me entreter, é inútil, então a desligo, alcanço um dos livros que guardo em baixo da cama, leio algumas páginas aleatórias, e uma frase da leitura me coloca pensativo por alguns minutos, onde diz:

"O homem comum vive num silencioso desespero".

Leio algumas outras páginas, mas logo fico entediado e desisto do livro, levanto, agarro os cigarros e vou até a sala, pego um disco de músicas clássicas e o coloco na vitrola para tocar, a primeira da lista é a sinfonia quinta de Beethoven, é a minha favorita.

Uma das poucas paixões que tenho na vida é está pequena coleção de vinis que guardo numa caixa de madeira próximo ao rack da sala, juntamente com essa vitrola bastante antiga onde toco os discos de vez em quando. Retiro alguns objetos de cima da poltrona empoeirada e me acomodo nela, fico ouvindo a sinfonia tocar, as emoções perturbadoras e envolventes do maestro alemão que permeia todo ambiente. Acendo outro cigarro, as horas passam lentamente.

Tomo outro banho, escovo os dentes, me arrumo rápido, são três horas, saio de casa para pegar o coletivo rumo ao centro e assim, encontrar com o Branco, como havíamos combinado. A chuva cessou, mas o tempo continua nublado, o sol se esconde por entre densas nuvens, e ainda há pouca movimentação de transeuntes.

O ônibus segue seu caminho rumo ao centro da cidade, olho pela janela e vejo as ruas passarem, as casas, as calçadas, os muros, os postes, as invasões de loteamentos, os terrenos baldios, os prédios. E observando toda essa fotografia da cidade me atingindo severamente, sinto que ela cresce de forma desordenada e triste. Tudo aqui tem um aspecto injusto e arbitrário. A minoria com maior poder aquisitivo se tornando cada vez mais esnobes e metidos, enquanto que a grande maioria pobre permanece esquecida pelo poder público, iludidos pelos políticos, não sei, mas acho que a cidade está se tornando uma metrópole fantasma, com pessoas cada vez mais entediadas, sem perspectivas e insatisfeitas, sem esperanças e violentas.

Chego ao destino desejado, desço do coletivo, recebo uma mensagem no celular, é do meu amigo, pedindo para eu espera-lo mais alguns minutos, pois precisou se ocupar e por isso irá se atrasar. Respondo sua mensagem dizendo que irei aguarda-lo na orla, então sigo andando em direção ao local. Chego e recosto-me no parapeito de proteção, e a minha frente está o grande rio, a baía do Guajará, e mais ao longe a ilha das onças entre outras ilhas. Sinto o vento que sopra ameno e agradável, observo as grandes embarcações atracadas no cais das docas e suas máquinas manuseando seus contêineres. Então me perco em pensamentos olhando a maresia que se desenha em ondulações pacíficas na superfície das águas.

A calçada que segue de um lado ao outro em frente a esse ponto turístico já está repleto de pessoas, umas em pé andando e conversando, outras sentadas ocupando as cadeiras dos bares, sorveterias e restaurantes que fazem parte do ambiente. Acendo um cigarro e observo no céu um pequeno bando de aves partirem em direção ao sol, voando em formato de V, semelhante a uma seta, todas juntas, até sumir no horizonte. O sol da tarde ainda aguarda as nuvens se dissiparem, para assim, poder se pôr sobre o escuro das ilhas mais distantes.

Começa as apresentações de quadrilha homenageando o boi bumba. São crianças, jovens e adultos fantasiados, uns dançando outros tocando instrumentos musicais e todos cantando seus hinos folclóricos, fazem um belo espetáculo, alegre e divertido, contagiando turistas e visitantes que acompanham de perto. Eu observo de longe toda essa movimentação, mas sem muito interesse.

Meu amigo chega finalmente e digo:

- Até que enfim, pensei que tivesse se perdido por ai.

- É meu amigo, mulheres, sempre desconfiando da gente, tu sabes como é.

- Te entendo perfeitamente, sei muito bem o que é isso.

Cara aqui já deu pra mim, vamos lá pra praça, preciso tomar umas bem geladas, pra relaxar.

- Beleza, vamos nessa.

São quase sete horas, a noite sem estrelas começa a cair lentamente sobre a cidade, na avenida principal o movimento de carros e pessoas passa a ser mais intenso, seguimos andando pela calçada, caminhando em direção à praça, conversando sobre quaisquer assuntos sem muita relevância.

- Jones, tô pensando em comprar aquele curso online de representante publicitário, de repente faturar uma grana extra pela internet, tem gente falando que funciona mesmo, acho que vou tentar.

- Eu não tenho a menor paciência pra empreender um negócio desses, além do quê eu não vejo isso com bons olhos não, pra mim isso representa só mais alguma armação feita por hackers, programadores mal intencionados, que ficam enchendo a rede com esses spans e anúncios de sites duvidosos e que no final acaba prejudicando alguém. Eu não me envolvo com isso não.

- Vou pesquisar direitinho tudo isso e ver como funciona realmente, se for tudo certo eu compro.

- Sim, claro.

Continuamos conversando sobre tudo. Branco fala do seu aniversário de vinte e nove anos que pretende comemorar antes de eu viajar, falamos da época da juventude, os tempos do futebol, das festas que costumávamos frequentar, da faculdade, até chegar o período difícil das ilusões das drogas e do álcool. Ele é um dos poucos amigos que consigo conversar sobre isso sem me preocupar com o que foi dito, querendo ou não temos algo em comum, lutamos durante muito tempo com os mesmos demônios que nos assolava dia e noite e isso nos une de certa forma, e temos consciência disso.

Chegamos à praça e vamos direto ao bar do parque, famoso ponto turístico da cidade de Belém, frequentado por intelectuais universitários, boêmios e prostitutas, pois para essas últimas, todo lugar é lugar de fazer negócios. O bar fica situado na praça da república próximo ao teatro da paz, o lugar é considerado pela grande maioria como um dos melhores da cidade para se reunir com amigos, confraternizar, e se divertir descontraidamente. Mas para mim, não passa de um cubículo escuro ao ar livre, com suas cadeiras velhas de ferro e mesas redondas de metal enferrujadas, perto de uma praça onde se encontram deitados alguns mendigos e circulando alguns pedintes. Lugar esse onde venho de vez em quando bebericar umas cervejas, curtir o ócio e matar o tempo.

Subimos os cinco degraus de acesso ao local e andamos até a última mesa próxima ao parapeito. Chamo o garçom, peço uma cerveja, Branco pede refrigerante, ele não toma bebida alcoólica, não mais. Acabou descobrindo sua limitação em relação a isso, quando ingere álcool, todo o distúrbio do vício volta de forma arrasadora e sua vida vira um inferno de novo. Já presenciei duas dessas recaídas e são devastadoras, é realmente uma situação muito difícil para a família, por isso não pode beber. Ele já precisou ser internado algumas vezes em clínicas de reabilitação, quando a coisa ficava realmente complicada. Quanto a mim, por alguma razão qualquer, não cheguei nesse estágio da dependência química, de alguma maneira consegui me impor ao vício sem precisar de reclusão social e nem abdicar da bebida.

Chega o garçom com os nossos pedidos, a cerveja para mim e o refrigerante para o meu amigo, encho o copo, tomo de uma só vez, encho novamente, tomo até a metade e acendo um cigarro.

- Então Branco, como tá a filhinha, qual a idade dela mesmo?

- Pois é, tá morando com a mãe, ela fez seis anos já, eu estava com ela ontem, tá super inteligente, observadora, pergunta tudo, tá muito esperta a minha filha. E o teu garotão como é que tá?

- Também, morando com a mãe na casa da avó, ele completou três anos, sempre passeio com ele aos domingos, tá muito, muito esperto, sou louco por aquele moleque, tu sabe né?

- É parceiro o tempo passa rápido, tu vai ver. Parece que foi ontem que a minha bebê nasceu, incrível.

- É verdade. Passa rápido demais.

A noite segue avançando no bar do parque, todos conversando seus assuntos particulares e desimportantes, eu e meu amigo não fazemos diferente, falamos sobre política, religião, a vida, mulheres, futebol, futuro, entre outras baboseiras que se conversa em mesa de bar.

Certa garota que está acompanhada de outras três, em uma mesa mais adianta, começa a cantar uma linda canção lírica com a voz exuberante, uma autêntica soprano. Ela é morena e um pouco gorda com longos cabelos ondulados, canta divinamente. Todos aplaudindo no final da apresentação. Que bela voz, que linda canção.

A conversa continua descontraída e o burburinho das outras mesas permanece o mesmo. Então uma segunda cantora da mesma mesa da primeira, solta a voz para todos ouvirem, essa parece mais jovem, é branca, cabelos castanhos ondulados, têm uma longa mecha de cor muito clara que se destaca na parte da frente dos cabelos, assemelhando-se a personagem vampira, heroína das histórias em quadrinhos dos X-Men. Ela canta um clássico da cantora inglesa Emy Winehouse. Cantando com tamanha perfeição e me deixando admirado. Termina a canção, todos em suas cadeiras aplaudindo, eu a aplaudo de pé olhando dentro de seus olhos, ela percebe a investida, mas logo desvia o olhar.

Meu amigo recebe um telefonema, é a sua mãe, ele levanta e afasta-se para atendê-la, enquanto eu continuo bebendo e lembrando a melodia que nos proporcionou a jovem cantora. Depois de alguns minutos ele retorna.

- Cara, eu tenho que ir, meu pai passou mal e tá no hospital, crise de hipertensão de novo, minha mãe tá desesperada, tenho que ir.

- Vai amigo, vou ficar torcendo por uma recuperação rápida dele, vai dar tudo certo, se precisar da minha ajuda é só ligar.

- Valeu parceiro, deixa eu correr, tchau.

Ele corre e dobra a esquina, desaparece. Desejo toda a sorte do mundo a ele, é um cara esforçado, dedicado à família, diferente de mim, que há tempos sou negligente com a minha. Sou péssimo na arte de insistir e persistir por qualquer coisa ou por qualquer pessoa, sempre desisto rápido demais de tudo e de todos.

A noite continua, agora só entre cervejas, cigarros e olhares silenciosos que desponto aos movimentos corriqueiros e escassos desse lugar. E no meio de todos esses encontros e desencontros tortuosos, eis que se achega na mesa ao lado um jovem peruano, aparenta ter seus vinte e poucos anos, cabelos caindo nos olhos e completamente bêbado, chega me estendendo à mão, falando coisas desconexas, fala sobre o seu orgulho de ter sangue Inca correndo nas veias, exalta seus ancestrais, seu povo, seus valores, sua religiosidade, suas crenças, entre outras coisas. Então, penso cá com meus botões e indago: Deus Todo Poderoso, de onde diabos saiu esse tipo pra ficar me a aporrinhando a paciência com esse papo furado, era só o que me faltava. Ele poderia ter-se aproximado de qualquer outro filha da puta que estão aqui sentados, mas o universo sempre conspira e faz com que esses maníacos infames se atraem pra perto de mim. Porra será que é difícil perceber na minha postura desleixada e na minha patética indiferença que eu sou apenas um solteirão com crise de identidade e que quer ficar só? Eu poderia agora mesmo manda-lo para a puta que o pariu, mas não faço isso, tenho o maior dos defeitos, sou estupidamente educado.

Então permaneço aqui, com cara de idiota, dando ouvido, fingindo estar interessado nos comentários patrióticos, confusos e desbaratado do cidadão. Mas logo desisto, não aguento sustentar esse diálogo, e a essa altura já estou de saco cheio de tudo e sem o menor entusiasmo pra ouvir histórias, muito menos de um peruano bêbado. Chamo o garçom, pago a conta, levanto, tento, sem sucesso interromper o discurso do jovem embriagado, para poder me despedir. Nem se eu me tornasse uma estátua de sal nesse instante bem na sua frente, ele pararia de falar. O guerreiro Inca continua tagarelando para mim sua prosa desprovida de sentido, e de forma definitiva, até um tanto clichê, lhe digo:

- Adiós Hermano, gracias.

Vou andando em direção à saída, passo pela mesa das meninas cantoras e lanço meu último olhar a jovem intérprete de Emy, a vampira encantadora da noite que termina.

Ando alguns metros pela calçada da grande praça, encosto-me a um dos postes laterais do local, acendo um cigarro e fico fumando. Nesse momento há pouca movimentação de carros e pessoas na avenida principal, tornando-se naturalmente, mais apreensiva e perigosa. Logo mais a frente uma viatura da polícia surpreende um grupo de cinco mendigos que estão deitados no chão da praça, descem dois PMs ordenando-os a levantarem, eles são revistados e um deles é algemado e levado pra dentro do carro, uma mulher que faz parte do grupo começa a gritar desesperadamente, pedindo socorro para quem passa por perto, diz que estão levando a pessoa errada, que aquele é seu filho, que é inocente. Mas de nada adianta, os policiais levam o pobre diabo embora com eles, a suposta mãe chora desconsolada sentada na calçada na companhia dos outros três do grupo.

Ninguém deu muita atenção ao que ocorreu com os mendigos que estavam dormindo na praça. Acho que talvez o preconceito não deixe ninguém entender e também não se importar, com a dor de pessoas que vivem nas ruas.

Bem, são quase duas, e andar sozinho há essa hora por estes lados da cidade já não é seguro, se pretendo voltar pra casa inteiro ou de posse dos meus pobres objetos de algum valor que carrego comigo.

Apanho um táxi, sento no banco de trás, dou as coordenadas ao motorista, o carro segue a caminho de casa. A rádio do veículo está sintonizada em uma estação tocando baladas bregas internacional. E durante o percurso observo a cidade apresentando seus grupinhos de festas, seus mendigos e bêbados perambulando pelas calçadas, seu aparente terror nos becos escuros, sua apatia noturna habitual.

Reflito na viagem que farei ao sul, e como de certa forma tudo isso me assusta, toda essa mudança me apavora, mas agora não há como voltar atrás, não tem como desistir, já está tudo decidido. Que droga. É essa minha louca obsessão ideológica de liberdade falida em que me agarro, e sei que é tudo ilusão, ninguém é livre de fato, todos somos reféns das mazelas impostas pela sociedade e daquelas que nós próprios criamos. Por mais que busquemos a liberdade, somos aprisionados pelos nossos desejos e os desejos do mundo. E pra isso não há solução.

Chego em casa, pago a corrida, a rua está completamente deserta, segue enfileirados os postes despejando suas luzes pálidas sobre calçadas vazias. Nessa madrugada não brilha estrelas nem luar, há só densas nuvens soprando um vento sinuoso, anunciando a próxima chuva, e mais adiante, um cachorro preto, de rua, assustado, vasculhando os sacos de lixo na esquina.

Subo as escadas do cortiço onde moro num dos bairros mais afastados do centro da cidade, abro a porta, entro, tiro os sapatos, acendo um cigarro e ligo o aparelho de som na estação das baladinhas bregas que ouvia no táxi, vou ao quarto pego a garrafa de vodca e o cinzeiro de cima da estante, volto pra sala e me sento no chão próximo a caixa de som, tomo algumas doses da bebida e fico ouvindo a música tocar baixo, dou um sorriso de bêbado e falo meio entrecortado:

- Essa eu conheço, é Roxette, It must have been love.

E começo a cantarolar junto com o rádio, sorridente e atrapalhado. Fico curtindo esse que pode ser meus últimos momentos de embriaguez aqui nessa casa, pois os planos agora são outros, é ir para o sul e não voltar mais, nunca mais. E sabe Deus o que me espera por lá.

O tempo passa, vejo as horas, são mais de três, acabou minha vodca, me levanto do chão, olho pela janela, começa a chover lá fora, desligo o rádio, pego o cinzeiro e os cigarros, apago a luz da sala, caminho em direção ao quarto, estou sem fome, apesar de ter ficado várias horas sem comer nada, entro no quarto acendo a luz e me jogo na cama, fico olhando para o teto sem pensar em nada, apenas fitando uma pequena mosca que se debate com a lâmpada florescente até atingir a exaustão então cai, mas logo retorna em seu empenho de confrontar a luz, a sua estranha obsessão pela luminosidade, ela não desisti, não desisti. Lanço a mão no caderno de anotações que estava na cama, torno a ler o poema que havia iniciado inconscientemente na noite retrasada, releio, acendo um cigarro, leio novamente, pego a caneta de dentro da gaveta e continuo a sua escrita:

Oh, minha'lma

Já não sei onde nos perdemos

Em que frios desalentos esgotaram nossas forças

Tudo se amanhece para nós

Das noites que chegavam infinitas restaram-nos os sonhos

As lembranças imortais da imensidade de nossos desejos

Eu corri como louco atrás de estrelas que brilharam tão gloriosas, mas que se extinguiram tão breve.

E o caminho de volta está sendo longo e pesado. Escuro demais.

Talvez consiga, talvez não retorne.

Mas serei fiel a ti minha'lma

E as noites que criamos para voar.

Fecho o caderno e o deixo de lado, estico uma das mãos para alcançar o interruptor na parede e apago a luz, deitado agora, observo a escuridão do quarto e as sombras que deformam os objetos parados, as paredes se erguem como muralhas duma fortaleza abandonada, em uma terra inóspita e esquecida. É a minha prisão é o meu lar. Entrego-me inteiro ao cansaço, o meu peito se aperta por essa estranha sensação, a dor que escorrega por todo meu corpo, essa dor já envelhecida que carrego comigo por muitos anos, acho que desde quando nasci, há longos trinta anos. Meus olhos solvem lágrimas difíceis de reter, é essa solidão incontida, prevendo talvez outro duro golpe que receberei mais a diante de forma fria e profunda, alguma tristeza maior e desconhecida que ainda irá me atingir veemente não sei quando, não sei.

A tempestade se debate na janela fechada, ouço as calhas se enchendo com a chuva e despejando suas águas no chão. Acendo outro cigarro, sopro a fumaça no teto, no obscuro ar parado do ambiente, aonde vai se formando uma espécie de neblina taciturna, pairando na escuridão solitária do quarto.

Tomb
Enviado por Tomb em 12/07/2014
Reeditado em 12/07/2014
Código do texto: T4878948
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