278-UMA BICICLETA PARA DOIS
UMA BICICLETA PARA DOIS
O velho italiano Genaro Solapino tem uma família grande: Aurora, com vinte e um anos, é telefonista, trabalha na Cia. Telefônica; Helena, com vinte incompletos, é empregada na Loja das Novidades. Rômulo, dezesseis anos, que terminou o ginásio no fim do ano passado, conseguiu, por ajuda do Orozimbo, que quer namorar Aurora, emprego no Banco de Crédito Real. A seguir vem Remo, com catorze anos, que está trabalhando com o pai. As três meninas mais novas — Emília, Rosinha e Olga — estão no grupo escolar.
A oficina de Genaro é apenas uma meia-água coberta de folhas de zinco, encostada à sua casa, e com largo portão para importante avenida do bairro de Santana. O ferreiro é perito em fazer aros de ferro para carros de boi. A procura por aros caiu muito nos últimos anos, mas apareceram outros trabalhos: peças para caminhões e automóveis. Grande é a demanda por molas, lâminas de aço temperado, no que Genaro é mestre.
— Remo, vamos acabar estas molas pro Melquíades. — Enquanto aquece o ferro na forja, o pai apressa o filho no serviço. Fala com dificuldade, entre haustos de respiração difícil.
— Sim, pai. Fique tranqüilo, hoje completamos a encomenda do Seu Melque. — Remo, apesar da idade, é rapaz feito, alto, forte, e gosta do serviço da ferraria.
Genaro não está bem de saúde. Os pulmões estão danificados pela inalação de fumaças tóxicas das soldas e pelo constante calor da forja em contraste com a friagem da oficina no outono e inverno. A asma ataca-o periodicamente, infligindo-lhe horas e, por vezes, dias de respiração difícil num chiado sinistro. Nos meses de verão, a poeira e o calor também lhe causam desconforto e dor.
Rômulo e Remo, que se encontram apenas durante as refeições, vivendo cada qual por um lado, têm um sonho em comum: possuir uma bicicleta. É claro que cada um sonha com a “sua” bicicleta. Mas, tendo em vista as dificuldades da família, é um sonho de difícil realização. Aprenderam a pedalar nas bicicletas alugadas da bicicletaria do seu Garcia, onde de vez em quando alugam bicicletas para longos passeios pelas ruas da cidade ou pelas estradas de terra.
Rômulo terminou o ginásio e logo entrou a trabalhar no banco. Serviços de contínuo, entregando avisos e fazendo a limpeza. O pai tem orgulho do filho:
— Sará uno gerente de banco, questo bambino!
Rômulo tem de caminhar demais, quase o dia todo, pela cidade, entregando avisos e dando recados, a serviço do Banco. De constituição franzina, asmático como o pai, cansa-se facilmente. Se tivesse uma bicicleta, o serviço seria mais rápido, eu cansaria menos, pensa.
Pediu ao chefe que comprasse uma bicicleta, para fazer o serviço de rua mais depressa, mas o pedido é negado pelo gerente.
Ah, que miséria. Pois vou, eu mesmo, comprar uma bicicleta. A idéia fica remoendo na cabeça. Mesmo que seja usada. Seu Garcia tem uma em bom estado.
Há um senão: ganha pouco, entrega a maior parte do ordenado à mãe, para ajudar a família. Entretanto, após seis meses de trabalho, tem alguma economia.
— Nós dois podemos comprar aquela Phillips, do seu Garcia. — convida o irmão .
— É velha. — Remo é de poucas palavras.
— É de segunda mão, sim. Mas está em bom estado, parece nova. Você tem aquele dinheirinho no cofre e a gente faz uma sociedade.
Desconfiado, Remo se recusa a usar suas parcas economias numa aquisição. O irmão é convincente e depois de algumas conversas, resolve-se.
— Tá bem. Mas vamos os dois juntos conversar com seu Garcia.
— Claro, já que somos sócios, vamos fazer tudo juntos.
— E tem uma coisa. Não podemos falar lá em casa que temos uma bicicleta. Papai não vai concordar.
— Claro. E mamãe vai morrer de preocupações se souber que andamos pelas ruas pedalando nossa bicicleta.
Compram a bicicleta. Do seu Garcia, que concorda que o veículo seja guardado em seu estabelecimento e só será retirada por um dos dois irmãos.
— Como é que vamos usar a bicicleta? — Pergunta o ingênuo Remo.
— Eu preciso dela durante o dia, quando você está na oficina. Então, uso de dia, para entregar avisos do banco, e você usa a bicicleta à noite.
— Puxa, mas aí você fica na vantagem.
— Então, você fica com a bicicleta também nos domingos, o dia inteiro.
— Tá certo.
— Pra não haver confusão, vou fazer um contrato entre nós, assim a gente não briga.
Rômulo está entusiasmado com a aquisição. O contrato é feito, datilografado em papel do banco, em duas vias. Cada um fica com uma via. Coisa de gente adulta, de sociedade séria.
O acidente aconteceu na sexta-feira, véspera do Carnaval. Rômulo descia pela rua D. Pedro II, calçada com paralelepípedos, apropriada para deixar a bicicleta “voar” Distrai-se e a bicicleta choca-se contra o meio fio da calçada. O guidão entorta, a roda também. Rômulo é lançado longe. Felizmente, só tem escoriações no braço e o joelho direito esfolado. O acidente aconteceu do outro lado da cidade. Rômulo deixa a bicicleta no Bar do Amadeu, seu conhecido, e acaba o serviço do banco a pé — mancando.
De tardezinha, após o expediente, vai buscar a bicicleta no bar, arrastando-a até a Bicicletaria do seu Garcia.
— Caramba! Que é que você fez com a bichinha? Como foi isso?
— Quanto fica o conserto? — Sem explicar o acontecido, Rômulo quer saber logo de quanto será o prejuízo.
— Uns cem mil réis.
— Não tenho esse dinheiro. O senhor faz a prazo? E tem de ser conserto rápido.
— Quanto ao prazo, num tem problema. Mais vai demorar mais de uma semana.
Impossível! Além de ficar privado do uso, tem ainda de explicar ao irmão o ocorrido.
Naquela noite, conta a Remo o acontecido e as providências tomadas.
— Eu sabia que não ia dar certo esse contrato. Agora, sem dinheiro para pagar o conserto, vou ficar sem a bicicleta nesse dias todos do carnaval. Já tinha combinado com o Landinho um passeio...
— Eu pago o conserto, seu Garcia me dá prazo.
— Cê ficou louco? Cem cruzeiros? É a metade do preço que ela custou. Cê vai levar mais de seis meses pra pagar o conserto.
Ficam amuados por alguns minutos.
— Tenho uma idéia. — Remo pensa ter uma solução. — Vamos levar a bicicleta pra ferraria e nós dois vamos consertar.
— Não entendo nada disso.
— Pedimos ao papai para nos ajudar.
— Ele nem sabe que nós temos uma bicicleta.
— A gente fala que ela é do banco, que você tem de devolver consertada ou comprar outra pra substituir. Ele ajuda, sim.
Assim fizeram. E o velho Solapino ajudou os filhos no conserto do veículo. Isto é, ele a consertou praticamente sozinho. Os filhos ficaram por ali, rondando e prestando pouca ajuda. Deu até dinheiro para Rômulo comprar novas varetas para substituir as quebradas. Desentortou a roda, alinhou-a, equilibrou-a com precisão. O guidão também foi consertado com maestria. Trabalhou todo o fim-de-semana: de sábado de manhã até terça-feira. Pelas quatro horas da tarde da terça, a bicicleta estava funcionando como se nova.
— Agora, vamos pintar as partes esfoladas.
— Ah, pai, pode deixar com a gente. — propôs Remo, que via com aflição o pai, com a respiração difícil, sacrificando seus dias de descanso.
Cansado, o velho concordou. Deixou que Remo e Rômulo fizessem o final do trabalho.
Enquanto pintavam, com tinta preta ou vermelha, os dois conversavam.
— Puxa vida, nunca pensei que desse tempo. — Rômulo, ainda abalado pelo incidente, estava abatido.
Remo, ao contrário, estava orgulhoso pela ajuda na recuperação da bicicleta.
— Mas deu certo! Coitado do papai é que teve de trabalhar nestes feriados, pensando que a bicicleta fosse do banco. — Dá a última pincelada. — Acho que devemos contar a verdade pro pai. .
— Cê é bobo mesmo, hein, Remo? Ele vai ficar danado da vida e muito decepcionado. Cê viu como ele ficou satisfeito em consertar tudo, com rapidez? Está feliz pelo que fez. Quer estragar tudo? — Pensa um pouco e continua: — Sabe, fui o culpado, devo uma reparação.
— Que nada, Rômulo. A bicicleta tá nova de novo, não custou nada.
O irmão mais velho insiste numa reparação.
— Olha, vamos mudar nosso combinado. Assim: eu fico com a bicicleta três dias da semana. Nas segundas, quartas e sextas e você fica com ela nos outros dias da semana. Vou escrever outro contrato.
— Pra quê? Não posso usar a bicicleta nos dias da semana, estou trabalhando na oficina. Não precisa escrever nada de novo acordo. A gente tem de confiar na nossa palavra. E, por mim, vou usar o papel deste contrato para limpar a bunda.
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 6 DE ABRIL DE 2004
CONTO # 278 DA SÉRIE MILISTÓRIAS