262-SURURU ESPORTIVO SOCIAL-Futebol
— Puxa vida! Vocês não ficam satisfeitos nunca? — O pai relutava em permitir a saída de Totonho e Chiquito à noite. — Já não tiveram o bastante por hoje?
— Ara, pai! Deixa a gente ir. — Totonho, nos seus treze anos, já tinha coragem de insistir. — Prometo que volto na hora em que o senhor marcar.
— Eu também. — Chiquito, dez anos, acompanhava o irmão para o que desse e viesse.
— Tá bom, tá bom. Mas estejam de volta às nove. E tomem cuidado com o pessoal de Arapé. — Seu Tibúrcio sabia como eram os torcedores de futebol.
— Num tem perigo, pai. A gente vai com o Julio e o Zé Maria.
Começava a noite de domingo. A tarde fora animada, com a partida de futebol entre o time local e o da cidade vizinha de Arapé. O jogo fora tremendo, com lances sensacionais, alguns trancos e rasteiras, ignorados pelo juiz, e terminara empatado. O que, em vez de contentar os torcedores de ambos os esquadrões, gerou descontentamento geral. Só não acabou em pancadaria no campo devido a um toró que despencou nos últimos minutos da partida. Os ânimos refrescados, os jogadores do time visitante e a maioria dos seus torcedores voltaram a Arapé pelo trem das dezoito horas, ainda debaixo de chuvisqueiro.
Os meninos da rua Dr. Plácido Guerra prepararam-se com esmero para a noite na Praça da Matriz. Não eram ainda sete e a tarde de verão, lavada pela chuva, estava clara quando os quatro chegaram à praça. O footing estava começando.
Nas noites de sábados e domingos, feriados e dias santos, o footing era imperdível. Obedecia a regras nunca enunciadas, que a prática consagrara: pelo largo passeio do jardim os rapazes caminhavam na metade externa, no sentido horário. As moças caminhavam na parte interna da calçada, em sentido contrário. De tal forma que a cada meia volta, as pessoas se cruzavam, olhares se encontravam, palavras e sinais eram trocados — enfim, o flerte inocente entre jovens . Quando um par passava para o namoro, ia caminhar na parte interna do jardim, um circuito entre árvores, com bancos sob lâmpadas ou mos recantos escuros, românticos e convenientes aos mais atrevidos.
Naqueles idos dos anos quarenta, o namoro sucedia ao piscar de olhos, ao flerte. Que, por sua vez, era sucedido pelo noivado, e, em seguida pelo casamento. Tudo muito organizado, dentro na mais pura tradição mineira. A grande maioria dos casamentos eram frutos (ou flores?) dessa caminhada ao redor da Praça da Matriz.
Era coisa bem própria de São Roque da Serra, apreciado pelos moços e moças da cidade, gozado pelos moradores nas cidades vizinhas. A turma de Arapé, por rivalidade entre as cidades, debochava desse costume.
Entretanto, naquela noite a praça estava diferente. Alguns rapazes de Arapé permaneceram na cidade, para aproveitar a noitada: a praça, o cinema, e, para alguns, uma esticada na zona. Como não estavam habituados ao bate-pernas (e nem adiantava, pois garota nenhum de São Roque iria “dar confiança” aos marmanjos da cidade rival), formaram grupos nos cantos da praça. Falavam alto, comentando o jogo da tarde, lançando olhares atrevidos às moças e chacotas aos rapazes. Não demorou muito e o ar da praça estava pesado, a atmosfera azeda, prenunciando confusão.
— Acho melhor a gente ir embora. — Zé Maria, o mais avisado da turma, aconselhou aos amigos. — O pessoal de fora tá provocando.
— Que é isso, Zé? — Totonho estranhou, pois há poucas voltas é que conseguira trocar uns olhares com Lúcia Maria, por quem estava “perdidamente apaixonado” — Não são nem oito e meia. Vamos dar mais umas duas ou três voltas.
— Só mais uma e caímos fora.
Não tiveram tempo de completar a última volta pretendida. O bafafá estourou a um só tempo em diversos locais: nos quatro cantos da praça começou a pancadaria.
Foi um corre-corre geral. As moças gritando, os rapazes da cidade procurando retirá-las da confusão, os visitantes ameaçando e partindo para a briga. Os mais afoitos, de ambas as partes, saíram logo para a escaramuça. Não foi o caso dos quatro mocinhos, nossos conhecidos: correram para a esquina do Bar do Ponto. Ali a turba já estava numa briga ferrada, o bar fechando as portas. Ninguém passava. Berlarmindo, soldado da força pública, soprava inutilmente seu apito. Os outros guardas faziam o mesmo, mas a pouca quantidade de vigilantes não permitia uma ação contra a multidão em choque.
— Vamos nos esconder na porta da coletoria. — Zé Maria, sempre atento, chamou os três amigos para a proteção do vão escuro e abrigado da porta da repartição estadual. E ali ficaram enquanto a confusão avassalava a praça.
A notícia da confusão correu célere e logo chegou ao bairro da Boa Vista. Seu Tibúrcio não perdeu tempo. Cabra valente, forte e destemido, até que apreciava uma confusão. E agora, seus filhos estavam lá no meio e a responsabilidade de pai clamou mais alto. Correu para a praça. No caminho, foi encontrando gente que fugia, alguns mancando, outros com marcas ensangüentadas no rosto ou na cabeça.
— Num vai lá não, seu Tibúrcio! A coisa tá preta.
— Vou pegar meus meninos. E se alguém machucou Totonho ou Chiquito, vai ter comigo. — Falando consigo, ia acumulando raiva, que iria despencar nos agressores. Contudo, ao se aproximar da praça, a calmaria já estava se estabelecendo, Pelo menos, na praça. Os rapazes de Arapé estavam correndo na direção da estação da estrada de ferro. É que às nove horas passava uma composição, a última do dia. Urgia pegar esse trêm e abandonar a cidade.
Perseguidos rua abaixo por alguns mais agitados serranos, não foram alcançados. O Chefe da Estação, ao ouvir o tropel, fez com que todos entrassem na fila para comprar as passagens, e quando chegaram os perseguidores, ele usou de sua autoridade de Chefe — impoluto na sua farda azul marinho com botões dourados e quepe alto — para impedir que a briga continuasse dentro de seus domínios.
Totonho e Chiquito, Zé Maria e Júlio saíram do esconderijo assustados mas ilesos. Puseram-se a caminho do Boa Vista. Encontraram, por acaso, Seu Tibúrcio, aflito e querendo desabafar sua raiva no próximo que encontrasse. Passou um sabão nos filhos, zangou até com os garotos vizinhos e decretou:
— Daqui pra frente, em dia de futebol, vocês não vão mais andar na praça.
BELO HORIZONTE,
4 DE JANEIRO DE 2004
CONTO # 262 da Série Milistórias –