260-O GATO ENGAVETADO-Bom Humor

Gervásio era ótimo funcionário. Pontual, atendia os clientes com cortesia, sempre com um sorriso. Jamais errava nos cálculos. Trabalhava ao lado da sala do Dr. Laércio, o gerente, muito a propósito, pois nascera, fora criado e sempre morara em São Roque da Serra e conhecia todos os clientes da pequena agência bancária. Por isso, era chamado pelo gerente diversas vezes ao dia, a fim de finalizar os empréstimos. Só não poderia ser considerado “excelente” por um pequeno senão, que o acompanhou por toda a vida de bancário.

Quando chegou o novo sub-gerente, seu Paulino, houve uma reorganização dos serviços da agência, redistribuição de tarefas. Uma “racionalização”, esse era o termo preferido do revolucionário chefe.

— Vou mandar o Gervásio para o setor de cadastro. Ele conhece todo mundo, irá facilitar muito as coletas de dados e a confecção das fichas cadastrais. — A sugestão do seu Paulino surpreendeu o gerente, que reagiu imediatamente.

— De jeito nenhum! Ele é meu braço direito. Deixa ele onde está.

— Já constatei que ele é muito desorganizado. Não dá a mínima importância aos arquivos nem para a organização de sua mesa.

— Pelo que vejo daqui, sua mesa está sempre limpa de papéis.

— Pudera! Você já viu as gavetas? Estão entulhadas de papéis, de carimbos, de coisas velhas, impressos que não se usam mais.

— Pois faça com que ele limpe as gavetas. Mas que ele fique no mesmo serviço. — Sem querer confessar, o gerente admitia depender do eficiente funcionário nos deferimentos dos empréstimos.

Os móveis antigos da agência eram grandes, pesados, ocupavam espaço à beça. Cada funcionário tinha sua mesa, com tampo de um metro e vinte centímetros por oitenta centímetros. Sob o tampo, do lado esquerdo, três gavetas com puxadores de metal. Do lado direito, apenas uma gaveta enorme, pesada, para arquivo de fichas igualmente grandes. Todos os funcionários mantinham, sobre as respectivas mesas, os carimbos e as respectivas almofadas, estojos para lápis e canetas, enfim, a parafernália de objetos que eram usados numa agência bancária antes da informatização dos serviços. A mesa de Gervásio, entretanto, era limpa. Sobre ela, mantinha apenas um bloco de papel. A caneta estava sempre no bolso da camisa. Quem via sua mesa, jamais poderia adivinhar a desordem das gavetas.

Uma limpeza nas gavetas da mesa de Gervásio foi determinada pelo seu Paulino. A bem da própria higiene, pois, na verdade, eram usadas como lixeiras. O monte de coisas inúteis mereceria um inventário que, por certo, encheria duas folhas de papel em escrita miúda. Gervásio tinha boa índole e aceitou tudo sem se aborrecer. Até participou da fogueira da papelada inútil e outros objetos encontrados nas suas gavetas (inclusive velhas gravatas e caixas de remédios). Perante a fogueira, feita no pátio interno da agência, onde, por vezes, a turma se reunia para comemorações, Gervásio falou solenemente:

— Prometo, daqui pra frente, manter as gavetas limpas.

Vãs palavras, queimadas como foram os papéis velhos. Continuou como era de hábito. E seis meses após, seu Paulino, em suas fiscalizações aleatórias, constatou que, de novo, a mesa de Gervásio se tornara uma lixeira. Quando comentou com outros funcionários a reincidência, Rômulo, o funcionário mais debochado, teve uma idéia, que guardou para si.

Segunda-feira de manhã. O banco é aberto às nove horas. O expediente se inicia bem cedo. É verão, o dia está claro e uma dezena de clientes adentra-se pela agência. Os funcionários, entrando pelos fundos, preparam-se para o dia de trabalho: espalham-se por entre mesas e arquivos. Alguns se assentam, outros se dirigem ao balcão, para atender os clientes.

O contínuo serve um cafezinho ao gerente, na sua sala. Seu Paulino abre o cofre e Fernando, o caixa, pega sua pesada caixa de metal. Gervásio chega afobado, em tempo ainda de tomar um cafezinho com o Dr. Laércio. Dirige-se à sua mesa e abre, de supetão, a enorme gaveta da direita. Um animal preto salta de dentro da gaveta, soltando um som terrível.

MIIIAAAAAAAU!

Gervásio leva grande susto e pula de lado, no que abalroa Fernando. A caixa de metal escapa de sua mão e cai no pé de seu Paulino, que grita de dor.

AAAIIIII !

Os clientes também se assustam. Em três saltos precisos, sobre arquivos e fichários, o gato preto alcança o lustre, no centro do salão, onde se dependura.

A confusão se estabelece por alguns minutos. Geraldinho, o faxineiro, chega, vindo dos fundos da agência, com uma vassoura de longo cabo, usada para tirar teias de aranhas do teto. Tenta afugentar o gato do lustre, que começa a balançar, os penduricalhos de cristais chocando-se entre si.

O gato dá outro saldo, caindo sobre o balcão. Alguns clientes se apavoram, correm em todas as direções. Do balcão, o gato salta para a porta e desaparece na rua.

O susto foi geral. Apenas um dos presentes à cena de tremendo alvoroço e surrealismo manteve o sorriso. Era Rômulo, apreciando com prazer a situação, escondendo a mão esquerda, em cujo dorso ainda estava visível um arranhão do gato, quando, a contragosto, na sexta-feira à noite, tinha sido engavetado.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 20 DE DEZEMBRO DE 2003

CONTO # 260 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/06/2014
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