259-O COELHO AZUL - Memórias/infância

Fabrício já sabia escrever os números. O avô ensinara com paciência o mistério dos algarismos e a mágica de suas combinações infinitas. O garoto queria aprender mais. Agora, sua sede de saber estava dirigida para as letras.

— Ele precisa ir para o jardim da infância. — Dona Alessandra, a mãe, tinha orgulho da inteligência do filho, para o qual desejava um futuro melhor. — Quanto mais cedo aprender a ler e escrever, melhor.

— Mas o jardim da infância só aceita meninas. — Seu Luigi, o pai, não queria ver o filho misturado com meninas nem dispensar a ajuda que o garoto, ainda que pouca, lhe dava na marcenaria.

Dom Felício, o avô, velho imigrante italiano, falava mal o português e lia jornais em italiano — Fanfulla, La Domenica Del Corriere — que recebia pelo correio, pois era assinante. Fechara a loja de tecidos e não trabalhava mais. Morava com o filho e nora e mesmo com tempo disponível, não saberia ensinar ao neto a escrever na língua portuguesa.

As Irmãs do Sagrado Coração de Jesus mantinham uma escola infantil, o Jardim da Infância, que funcionava no edifício do orfanato. Apenas para meninas. Quando a mãe tinha ido, pela primeira vez, falar com a diretora, esta fora incisiva na negativa:

— Não podemos receber meninos. Eles dão muito trabalho.

Dona Alessandra não desanimou.

— Vou falar com a Irmã Antônia. Ela vai me ajudar, tenho certeza.

Irmã Antônia era a responsável pelo Jardim da Infância,que tinha poucas crianças, talvez umas quinze, se tanto. Uma velhinha suave, tranqüila, de voz meiga e um meio-sorriso a dançar-lhe nos lábios finos. Fora professora da escola primária, antes de entrar para a congregação, e compreendia a vontade de aprender de Fabrício.

— Bem, agora vamos entrar de férias, e não temos aulas nos próximos três meses. Vou falar com a diretora se posso dar aulas particulares para seu filho. Da conversa com a superiora do Orfanato, ficou autorizada a fazê-lo.

— Ele pode vir todas as tardes, de duas às quatro. Se já sabe contar, será mais fácil. Nestas férias ele aprenderá a ler e escrever. — A boa notícia foi dada pela própria Irmã Antônia.

Em seguida, veio o problema do pagamento das aulas. O pai não ganhava muito no seu ofício, vivia, como se dizia, “da mão para a boca”, e a mensalidade estava além de suas possibilidades. Foi a vez de Luigi conversar com a diretora, a enérgica Irmã Lúcia.

— Quem sabe se posso pagar com serviços para o orfanato? — Sugeriu. A sugestão foi aceita, pois havia, sim, vários móveis a serem consertados ou reformados.

Fabrício aprontava-se cedo, antes do almoço, para as aulas das duas da tarde. Muito espertamente, pois já estando lavado e de roupa trocada, não precisava ir ajudar o pai na marcenaria. O Jardim da Infância ficava a dois quarteirões da casa, que ele percorria em menos de cinco minutos. Chegava sempre adiantado, ansioso por aprender.

As aulas de alfabetização eram entremeadas com outras, de trabalhos manuais e noções de higiene e religião. Ao mesmo tempo que aprendia a ler e escrever, decorava a tabuada e fazia contas. Nas aulas de catecismo ia sendo preparado para a primeira comunhão.

Tinha, então, seis anos. Era um garoto franzino, mas muito esperto. Gostava de livros, revistas, muito mais do que ajudar o pai na oficina. Tinha três livros ilustrados, com histórias da Branca de Neve, de Chapeuzinho Vermelho e do Gato de Botas, as quais sabia por ter ouvido e que recontava, mostrando as figuras.

— Vou ser doutor, quando crescer. — Afirmava, mesmo sem saber o que estava dizendo.

Foram três meses maravilhosos, que passaram rapidamente, como passam, velozes, as lagartixas pelos muros. Dias de aprendizado tranqüilo, o alfabeto, as palavras, as frases sendo assimiladas com facilidade pelo garoto. Nos horários de trabalho manual, Irmã Antônia tinha recursos que fascinavam o garoto: aprender a fazer caixas de papelão para presentes e colagens de figurinhas em cadernos. Com uma dúzia de pequenos lápis de cor aprendeu a desenhar e fazia desenhos caprichados. Copiou uma figura de Santa Cecília, a padroeira do orfanato, que, colocada em moldura, foi dependurada na parede da sala de visitas.

Do que mais gostou, entretanto, em matéria de trabalhos com as mãos, foi a tecelagem de papel colorido. Dentro de grossos envelopes vinham cartões com desenhos e tiras de papel, em diversas cores, as quais, quando trançadas, formavam as figuras que cobriam os desenhos da cartolina.

— Mãe, compra pra mim a cartela do Coelhinho Azul?

A mãe revirou sua caixinha de economias, dinheiro que tinha de seu pela venda de toalhas de crochê, e lá se foram, os dois, até a Casa Romana, a satisfazer o desejo do menino.

O Coelho Azul foi o último trabalho que fez no Jardim da Infância. Depois de pronta a tecelagem de fitas de papel, a figura de um coelho azul destacava-se contra o fundo amarelo, num contraste gritante. O pai emoldurou a cartolina com a tecelagem, tal qual fizera com o desenho de Santa Cecília. O novo quadro foi também dependurado na sala de visitas. Foi o animal de estimação que, durante muitos anos, habitou a saleta e motivo de orgulho do seu criador, o garoto Fabrício.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 19 DE DEZEMBRO DE 2003

CONTO # 259 DA SÉRIE “MILISTÓRIAS”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/06/2014
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