A fiel esposa e a cadela fiel

O dia transcorrera tranquilo como mais um dia, mas não era apenas mais um dia, era um dia igual aos outros e, inexplicavelmente, desigual. Enquanto a mente vagava confusa entre as reflexões que se sucediam, olhava entristecida para a cadela tão doméstica e indefesa por assim sê-lo, domesticada. Fez o almoço, enquanto punha as roupas na máquina de lavar e, o que poderia parecer aos olhos alheios uma ação mecânica e sofisticada, a ela lhe parecia muito pitoresca, pois orgulhava-se da maneira como subvertia a tecnologia, imprimindo um toque pessoal à sequência formatada pela indústria. O painel piscava intermitentemente enquanto seus dedos ligeiros deslizavam no painel. Sempre havia algo diferente naquele ir e vir do cursor e, no final, confirmava sua intuição quando o marido dizia “que roupinha macia, o que você fez?” Um risinho de satisfação pessoal correu-lhe o lábio, mas pouco durou. Como sempre sua alegria vinha entrecortada por pensamentos lógicos e absurdos, como o que tivera agora; o marido sempre a elogiava após uma traição. Tudo bem, ela dizia a si mesma. Havia vinte anos que ele a traía despudoradamente, a princípio com certa cautela, como se deve ter, mas com o tempo e o consentimento dela, ele se tornara abjeto, não havia critério em suas escolhas e procedimentos. Essa palavra “método” levava-a aos tempos da universidade, quando ainda escrevia sua dissertação de mestrado. Ela entendia tudo de método e procedimentos e, ficava intrigada com a falta de razoabilidade de seu marido. Se ela fosse ele, seria tão incrivelmente metódica que ele jamais desconfiaria de suas escapadelas. Mas, mesmo repleta de ideias luxuriantes, achava uma bobagem essa história de traição, sentia-se tão confortável que não cogitava subir em seus saltos para correr atrás de outro idiota, bastava-lhe o seu. A cadela dava voltas a sua volta, enquanto ela abraçava as roupas lavadas, macias e passadas. Seu olhar morava no olhar daquele animalzinho indefeso por ser domesticado. Sorriu-lhe, docilmente. O que a intrigava agora era uma questão mais metafísica que afetiva. Aquela maneira deliberada como utilizava a máquina de lavar não estaria afetando o comportamento de seu marido? E, se ela retomasse a sequência inicial, continuasse do ponto onde o manual orienta, se voltasse ao princípio, como na época em que ele lhe era fiel e sua máquina era um simples tanquinho em que as roupas saíam quase sempre ásperas e pouco limpas, justamente quando ele lhe era mais grato e, comumente, trapaceava os amigos para ficar com ela. Época em que ao chegar do trabalho, ainda ajudava-a a lavar a louça do jantar e passar as peças mais pesadas do enxoval. Quando não havia amaciante para lavar e passar e o ferro pesava sobre a roupa encardida. Seus olhos esqueceram-se da cadela frágil e domesticada e percorreram a ampla cozinha com sua ilha de cocção. Ocorreu-lhe um insight. Passou a embolar as roupas recém dobradas, lançou-as de volta à máquina, jogou sobre elas um detergente de assoalho e colocou no modo básico, vinte minutos, não mais. Dirigiu-se ao fogão e retirou do forno o “coc au vin” que acabara de preparar, acrescentou-lhe um copo de vinagre e umas boas pitadas de pimenta da Jamaica. Correu para o quarto, pois ele estava para chegar. Maquiou-se, penteou-se, cobriu-se por inteiro de perfume, joias, desceu as escadas dentro daquele vestido que a fazia perder o fôlego de tão justo. Sentiu o cheiro de queimado quando deu com o marido aflito, tentando espalhar a fumaça que tomava toda a cozinha. Tacou-lhe um beijo e correu para a sala de estar, não queria perder o próximo capítulo daquele novo seriado onde apareceria aquele ator que todo mundo estava comentando nas redes socais. O marido atônito aproximou-se dela com os olhos arregalados como a intuir alguma coisa de ruim. De repente, o som do celular rompeu-lhe o assombro, via-se no visor que ele não via, pois não tirava os olhos da esposa, o numero indisponível. Ela ria e batia palminhas, ansiosa com o dorso do ator sobre a tela da TV de sessenta polegadas, foi quando ouviu ele dizer “não vai dar...não posso sair, preciso cuidar da minha mulher” Ele sentou do lado dela, passou o braço em volta de seu pescoço e, em silêncio, permaneceu. A cadela domesticada roçou a perna dele e de repente fez xixi. Olhando a cadela de soslaio a esposa pensou: “a sua sorte é que ainda lhe resta alguma pulsão primitiva”.

Adelaide Paula
Enviado por Adelaide Paula em 25/06/2014
Código do texto: T4857551
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