249-ZÉ MACACO E FAUSTINA - Bom Humor
— Depressa, entra no quarto e tira a roupa. Fica só de cueca.
Tina empurra Zé Macaco para o quarto, fecha a porta por fora, deixando-o atônito, surpreso com o convite — ou ordem, sabe-se lá. Zé sente um frêmito, o sabor antecipado por algo que desejara a vida toda e que estava na iminência de provar. Coloca sobre o criado-mudo sua maleta profissional e vai se despindo, obedecendo ao que lhe foi dito. Enquanto tira o paletó, desabotoa a camisa e desce as calças, rememora, com imenso prazer, todos os momentos, horas, dias, semanas, meses e anos nos quais sufocara o desejo de possuir a incrível Faustina, desde seus tempos de estudante.
Zé Macaco lembra-se bem dos dias de grupo escolar, quando eram colegas da classe de dona Ana Luíza. Ela detestava o próprio nome e só atendia pelo apelido que trazia desde que entendia por gente. Até a professora, compreensiva, a chamava sempre de Tina. Uma garota cheinha de corpo, cabelos lisos escorrendo por sobre os ombros. Irrequieta, chamava a atenção dos meninos, que ficavam de olho nas grossas coxas mal escondidas pela saia curta do uniforme escolar.
Ele também trazia um apelido, era o Zé Mico, que lhe caía bem, pois a semelhança com um macaquinho era de pasmar. Enamorou-se de Tina nos primeiros dias da escola. Foram namoradinhos por algum tempo, no terceiro ano do grupo. Mas, no ginásio, o interesse da mocinha foi para outros colegas. O Gilberto foi o primeiro, depois foi o Licurgo, o Brazinho, Gilmar, e muito outros. Os garotos chamavam-na de Tina Vassourinha. Mico saía em sua defesa, inutilmente. Ela nunca mais lhe deu bola. Continuaram colegas no Ginásio Municipal e juntos prosseguiram na Escola de Enfermagem.
Durante os anos de estudante, José da Conceição de Souza teve muitos apelidos. Zé Mico foi nos tempos de escola. Assentava-lhe como chapéu surrado. O garoto magrelo tinha longos braços e pernas arqueadas. Testa curta e cabelo ouriçado. Olhos enormes e sobrancelhas espetadas. Orelhas de abano, redondas, as quais Zé Mico, por gaiatice, movimentava para frente e para trás. De andar desengonçado, os braços pendendo molemente ao longo do corpo, era um símio, sem tirar nem pôr. No ginásio, aos treze ou quatorze anos, passou a ser conhecido como “Chita”, assim que apareceram as famosas balas. Sua semelhança com a macaca do Tarzan, que aparece nos invólucros das balas valeu-lhe o apelido que ficou por muito tempo. Na Escola de Enfermagem, foi apelidado de Zé Macaco pelo doutor Epaminondas, e o apelido pegou definitivamente.
Ele não perdeu as esperanças de namorar Tina. Um dia ela será minha, tenho certeza. Nunca teve outra namorada. Seu jeito de ser e sua aparência não lhe favoreciam. O andar, o rosto, os longos braços peludos e finos não lhe facilitavam as coisas. O tempo foi passando. Veio a diplomação dos alunos como enfermeiros e enfermeiras e, depois, o trabalho no Hospital Municipal. Muitos foram admitidos, mas poucos permaneceram no serviço. Dez anos após, somente Zé e Tina permaneciam no trabalho. Os outros saíram, mudaram-se, casaram-se, enfim, sumiram.
Zé sempre lançando olhares símios para Tina. Não passava de olhares, pois não se atrevia a declarar, mesmo porque sabia que ela não lhe dava a mínima. Mas um dia hei de tê-la em meus braços.
Mais alguns anos e Tina saiu do hospital para casar-se. E Zé saiu para “cuidar da vida”: foi trabalhar por conta própria, aplicando injeções e fazendo massagens a domicílio. Nisto ele era muito bom: suas mãos de longos dedos passeavam com maestria por sobre músculos cansados, pela coluna vertebral ou sobre as batatas das pernas, aliviando dores e recebendo elogios por suas hábeis mãos.
Com o passar dos anos, ia cada vez mais se acentuando seu aspecto de símio. Os olhos, a face, o cabelo na testa curta, tudo o tornava extremamente semelhante aos símios. Dera para ser brincalhão, principalmente com as crianças, a fim de tirar-lhes o medo das injeções. Fazia momices, o que ia muito bem com seu tipo físico.
Nunca se esquecera de Tina. A mulher, agora já uma matrona, gorda e roliça, ainda era sua paixão. Nas suas caminhadas pela cidade, para atender os clientes, sempre dava um jeito de passar pela frente da casa da eterna amada. Que se casara, enviuvara e era mãe de dois garotos endiabrados como o quê. Meninos magrelos, mirrados, de crescimento retardado. A mãe já havia feito de tudo para que eles crescessem e engordassem. Vidros e vidros de Emulsão de Scott e Óleo de Fígado de Bacalhau foram tomados pelos dois, numa relutância explicável: os fortificantes tinham gosto repugnante. Dezenas de vidros do Biotônico Fontoura beberam os moleques, como se fosse água. Agora surgia um novo processo para fortificar as crianças: injeções de cálcio. E para aplicá-las nos garotos, chamou o competente Zé Macaco.
— Eu sei aplicar, mas os meninos não me atendem. Com você, Zé, é diferente, eles ficam quietos e agüentam firmes a picada.
Naquela manhã iria iniciar uma nova caixa de injeções. Mas, para surpresa do Zé, ela lhe diz:
— Depressa, entra no quarto e tira a roupa! Fica só de cueca.
É hoje, é hoje! Tirando a roupa, dobrando-a cuidadosamente sobre a banqueta, ia pensando. Tudo tem seu dia certo. Custou, mas, finalmente, ela vai se entregar. Tirou os sapatos, ficando apenas de cuecas e meias. De pé, no meio do quarto, ao lado da cama, esperava. Puxa, ela tá demorando. Não, eu é que estou muito ansioso. Sente a tesão chegando e o membro reagindo.
De repente a porta do quarto é aberta. Faustina entra de um supetão. Pelas mãos traz os dois meninos. Zé Macaco fica surpreso. A figura magra, esquelética, no centro do quarto, as mãos sobre a cueca, tentando disfarçar, permanece estática. Um verdadeiro orangotango em posição ereta.
— Mas, Tina, que é isso? Os meninos...
Ela não o deixa prosseguir. Colocando os meninos à sua frente, aponta para o desapontado Zé Macaco, e diz aos filhos:
— Olhem bem. Se vocês não comerem direito todos os dias, é assim que vocês vão ficar quando crescerem. .
ANTONIO ROQUE GOBBO
BELO HORIZONTE, 18 DE OUTUBRO DE 2003
CONTO # 249 DA SÉRIEMILISTÓRIAS