230-A NOVA TORRE DE BABEL-Desastre urbano

A NOVA TORRE DE BABEL

— Acho melhor a gente mandar fazer um projeto de verdade, comendador. Com todos os pormenores, cálculo da estrutura e coisas assim.

— Não carece, Padre Onofre. O Joaquim é competente, podemos empreitar a obra que ele dá conta do recado.

Os demais membros da comissão para construção da Igreja Matriz ouviam as ponderações do padre e a insistência do comendador em fazer a construção sem um planejamento adequado.

Padre Onofre estava há poucos anos exercendo as funções de pároco em São Roque da Serra. Logo percebeu a grande influência do comendador nos assuntos da Igreja. Era generoso nos auxílios à paróquia e por conta disso, estava sempre à frente na organização das festas, dos leilões, das comissões para reformas na igreja ou para aquisições mais importantes. Nunca rejeitou a ajuda do comendador. Mesmo quando observava pequenos atos políticos embutidos na generosidade do grande colaborador. Agora, por exemplo, nesta questão da construção da nova torre da igreja matriz, era evidente o interesse do comendador em colocar Joaquim Nepomuceno como empreiteiro da obra.

— Sei que o Nepomuceno é o melhor pedreiro daqui. Mas não tenho certeza da sua competência para atacar a construção da nova torre.

A discussão foi crescendo. Dr. Epaminondas, médico conceituado, saiu na defesa do Padre Onofre, enquanto Luiz Fagundes, o Cabo Teles e o Professor Eustáquio se posicionaram a favor do comendador. Já tarde da noite, não chegando a um acordo, as opiniões se radicalizando, Padre Onofre se deu por vencido.

— Estou vendo que estamos todos confusos. Nossa reunião está transformando a torre da igreja matriz numa nova Torre de Babel. Vamos adiar a solução para amanhã.

O pároco era de costumes simples. Afável e compreensivo, conquistara corações e mentes dos fiéis. Seus sermões não tinham grandiloqüência nem eram impressionantes. Ao contrário, eram simples peças de aconselhamento aos ouvintes, de muito bom-senso e praticabilidade. Por vezes, parecia contrariar os cânones da religião. Nas confissões, por exemplo, não dava penitência de reza: mandava o pecador procurar o ofendido, perdoar-lhe, ou desfazer o negócio mal feito, e a penitência tinha caráter social: visitar os pobres da Vila de São Vicente, levando-lhes alimentos. Visitar a enfermaria da Santa Casa para conforto dos doentes. Ou visitar os presos na cadeia. O padre era agradecido por tudo. Sua oração predileta não era o Padre Nosso, nem a Ave-Maria, desfiladas automaticamente nos terços e rosários.

— Gente, temos de agradecer. Agradecer a Deus e a todos, por tudo o que somos, o que queremos ser. — E na prática, no dia-a-dia, o padre vivia com um “obrigado!” na boca.

— Eles estão querendo economizar no projeto. Acho que devemos começar direito para terminar certo. — O padre queixou-se ao bispo, que não lhe deu apoio.

— Ora, padre Onofre, se existe a comissão para a reforma da Igreja, fique descansado. Eles que resolvam como o serviço deve ser feito.

A construção de uma nova torre fazia parte da reconstrução total da Igreja Matriz de São Roque. Primeiro seria erguida a torre e, em seguida, o corpo da igreja seria demolido, para ser substituído por outra construção, maior e mais moderna. A modesta igrejinha datava dos primórdios de São Roque da Serra, tinha paredes internas de pau-a-pique, era abafada e estava com o madeiramento do telhado todo carcomido por cupins.

— Não dá pra reformar, não senhor. — Nepomuceno foi taxativo, mesmo porque tinha interesse em desmanchar tudo e reconstruir a nova igreja.

Alguns meses depois, chegaram os sinos. Tinham sido doados por dona Sinhaninha Álvares, devota esposa (devota da igreja e do marido, nesta ordem) do Doutor Joaquim Tibúrcio de Souza Azevedo Álvares, advogado famoso, fazendeiro e dono de muitos imóveis na cidade, dado a gestos largos de doação e desprendimento. O casal viajara para a Europa, e os sinos foram comprados na Itália – não se sabe se em Milão ou em Turim. Mas na borda do sino estava gravada “Altimari & Figli— PRODOCTO D´ITALIA”

A torre estava quase pronta: era um esqueleto de tijolos – quatro colunas erguendo-se do chão até à altura de uns trinta metros. Na frente ficava o vão do portal onde seriam colocadas portas de bronze. Pelos três lados, as paredes iam sendo erguidas. Estavam já a dois metros do solo. Para cima, erguiam-se as quatro colunas, como membros despidos, amarradas entre si por varões de aço. Quando terminada, a torre seria ornada com vitrais pelos quatro lados. Uma escada em caracol daria acesso ao seu topo, aos sinos e ao relógio.

Quando foi avisado da chegada dos sinos, Padre Onofre pediu ao chefe da estação que mantivesse-os no armazém da estação férrea. Mas a ansiedade de dr. Tibúrcio, do comendador e do próprio Nepomuceno convenceram-no de que os sinos já poderiam ser elevados ao topo da torre.

Chegam os sinos, transportados pelo valente caminhão de Hipólito Sarmento, um robusto Chevrolet-Tigre. Fez três viagens da estação à praça da matriz, levando os sinos em engradados fortes de madeira e as pesadas caixas com a delicada maquinaria de funcionamento. Já anoitecia quando terminou o transporte. Marcaram o dia seguinte para o içamento dos sinos.

Montaram uma carretilha com fortes cordas, com as quais elevaram os sinos até o andaime superior da construção. Colocaram um sino em cada lado do andaime, para equilibrar o peso. Quando acabaram o trabalho, era já hora do almoço. O dia, que amanhecera claro e ensolarado, deu em mudar após o meio-dia, ficando a tarde embuçada e um vento quente começou a soprar. No final de agosto, estando o tempo muito seco, as primeiras chuvas sempre vinham precedidas de ventanias.

Antes que os trabalhadores voltassem à torre, após o almoço, começou a chover. Logo virou um temporal, com ventos, raios, relâmpagos. O dia ficou escuro. Os pedreiros e todos os trabalhadores foram dispensados.

— Com essa chuva, não podemos continuar. — Nepomuceno suspendeu o serviço daquela tarde. — Estão todos dispensados, podem ir pra suas casas.

Ninguém ficou pelas imediações da construção. Se alguém tivesse ficado, poderia observar o balanço da torre. Nem mesmo das casas vizinhas, ao redor da praça, houve quem notasse: além da chuva que obliterava a visão a poucos metros, a ventania obrigava os moradores a manter suas portas e janelas fechadas. O Bar do Centro foi obrigado a cerrar as portas pela metade, acendeu as luzes às quatro da tarde.

Por isso, ninguém viu o balé dos sinos na torre. Embora amarrados nos andaimes, os sinos escorregavam, por força da ventania, sobre as pranchas. Ora para um lado, ora para outro, aproximando-se ou distanciando-se dos pilares. A própria torre era impulsionada, poucos centímetros para um lado e para o outro, tal qual uma esguia árvore, sob a força da ventania.

E por mais barulhenta que fosse a tempestade, cheia de raios e trovões, um estrondo fenomenal se ouviu, acima de toda a parafernália telúrica. Ao mesmo tempo em que o chicotear de um raio, caindo por perto, ouviu-se um estrondo misturado com barulho de metal batendo sobre metal com violência.

— Cruz Credo! O mundo tá acabando! — Foi o comentário de Licurgo, o gerente do bar. Mas alguém que estava próximo à porta, notou, mesmo através da cortina da chuva, que algo de trágico havia acontecido.

— Gente, caiu um raio na torre!

Os poucos clientes do bar, curiosos, correram à porta, enfrentaram o vento, para ver.

— Cadê a torre? — Gritou alguém.

— Caiu um raio. — Juca explicou.

— A torre sumiu! — Outro grito anônimo.

Ainda que amedrontados, mas já encharcados nos primeiros passos, Licurgo e Juca correram para o centro da praça. E viram.

No lugar onde se erguiam os quatro pilares, em cujo topo estavam os sinos, não se via absolutamente nada. Um monte de detritos e ferros retorcidos era visível a poucos metros. A poeira nem chegara a se levantar, abafada pela chuva torrencial. Entre os tijolos e o madeiramento arriado, entrevia-se o brilho metálico, dourado, dos sinos.

— A torre desabou! — gritaram quase que em uníssono os fregueses do bar do Licurgo.

O estrondo foi ouvido muito além do bar e da praça da matriz. Por janelas e portas entreabertas os moradores viram o monte de detritos e logo a praça estava se enchendo de gente. Lamentos e lamúrias. Perguntas sem respostas ou respondidas pela metade.

— O que foi?

— Que aconteceu?

— Cruz Credo, a torre caiu!

Padre Onofre apareceu, vindo da casa paroquial, que ficava a dois quarteirões da praça. A sotaina molhada e enlameada pelas abas , o cabelo pixaim salpicado de gotículas, a água escorrendo-lhe pelo rosto e entrando pelo colarinho de celulóide branco.

— Minha Nossa Senhora! Mas o que foi isso?

— Foi um raio, eu vi!

— Tinha alguém por perto?

— Graças a Deus, não! Também, com este temporal, tava todo mundo trancado dentro de casa.

O temporal continuava, com intensidade máxima. Os freqüentadores do bar para lá voltaram. Padre Onofre abriu a porta lateral da igreja e entrou, acompanhado por diversas pessoas. Lá dentro, ajoelharam-se todos e começaram a rezar.

Com sua poderosa voz de baixo-profundo fez a oração de agradecimento.

— Obrigado, Senhor, por nos mandar esse aviso em hora tão propícia, quando não havia ninguém por perto que pudesse ser ferido ou morto. — Enquanto orava, um pensamento rebelde insistia em intrometer-se na oração: — Eu bem que avisei que precisava de um projeto bem feito para a torre. Eles não me escutaram. Agora, Senhor, eles vão ter de ouvir a SUA mensagem.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE , 18 DE JUNHO DE 2003

CONTO # 230 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 14/06/2014
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