Felicidade para cretinos e desesperados esquecidos por Deus
Seu Antenor havia mudado para o prédio fazia menos de duas semanas. Os longos anos a frente da seção de compras da prefeitura eram passado, e agora suas responsabilidades não iam além de regar algumas plantas pela manhã. Era um simpático e jovial Senhor querendo curtir a vida. Já era amigo do zelador, conhecia o pequeno Pedro, que atazanava todo o condomínio, e morava no mesmo andar que Paula, uma jovem encantadora que passava um pouco dos vinte, e sua mãe, Fernanda, uma vistosa viúva que parecia não ter mais que quarenta e poucos anos. Só como distração, começou a reparar nos horários das duas. Saiam sempre juntas pela manhã, entre dez para as oito e oito horas. Enquanto elas esperavam o elevador, ele escutava atrás da porta.
Este ritual se repetiu por algumas semanas. Levantar e esperar as duas saírem de casa. “...almoçar no centro?” Fernanda abriu a porta já falando alguma coisa. “Não sei, tenho que visitar um ambiente do outro lado da cidade. Vamos nos falando.” “Esta valendo a pena toda esta maratona? Você já pensou...”, o elevador chegou e acabou com o melhor momento do dia. Juntando o que tinha descoberto em conversas aqui e acolá com os porteiros, mais os poucos segundos que ele podia escutar todas as manhãs, sabia que ela estudava arquitetura numa faculdade particular, era estagiária numa grande empresa e tinha um namorado estranho, que falava pouco e tinha cara de pizza amassada. A Senhora de classe era advogada sócia de um escritório de direito trabalhista, que defendia os patrões, e tinha perdido o marido a pouco mais de dois anos. Pelo que se comentava nunca tinha estado com outro homem durante este tempo todo.
Aos poucos ele passou a nutrir uma obsessão pela vida de mãe e filha. Numa manhã furtiva Seu Antenor estava parado atrás da porta, ansioso para escutar aquelas doces vozes. Foi Paula que saiu falando: “...não sei se tenho futuro com ele. As vezes parece que ele não me vê. Outro dia fomos a um jantar com os pais dele e ele...”. Mais uma vez o algoz elevador deixava aquela angustia melancólica silenciosa no corredor. Ele queria saber. O que estava acontecendo? O que aquele infeliz fez para deixar ela com tantas dúvidas? Naquela tarde foi na floricultura, comprou um vazo grande com um Ficus bonito, e colocou na frente de sua porta. Na manhã seguinte estava lá, com um regador numa mão e a outra na maçaneta, vestindo uma camiseta branca, um shorts azul e chinelo. Quando a chave da vizinha da frente destrancou a fechadura ele abriu a sua porta, e como quem não quer nada foi regar a planta nova. “Bom dia!”, ele falou animado, sorrindo, mas sem demonstrar muita atenção. “Bom dia!”, as duas responderam juntas, mas a voz um pouco mais experiente de Fernanda se destacou, e ela continuou. “Reparei no Ficus a hora que cheguei ontem. Deu um ar mais puro para o corredor, não é Paula? Ela é arquiteta.” “É sim, está cheio, bem verde, complementa o ambiente.” Pim! O elevador chegou, e Seu Antenor pensou que aquela máquina podia enguiçar e não abrir, mas isso não aconteceu. “Muito obrigado. Tenham um bom dia.” E ele voltou para dentro completamente louco e alucinado com aqueles instantes mágicos.
O dia estava demorando para passar. Queria saber o que mais elas tinham comentado sobre o Ficus, qual a primeira impressão tinham tido dele? Desceu na portaria e começou a cercar todos, seguranças, porteiros, faxineiras, alguém que pudesse ter escutado alguma coisa quando elas saíram do elevador. Nivaldo, que estava tirando o lixo da garagem, deixou escapar que as duas passaram por ele alegres, e que a filha falava alguma coisa sobre não ser certo a mãe ficar tanto tempo sozinha. Seu Antenor se encheu de esperança. Agora tudo que queria era outra chance de encontrar com as duas. Não ia conseguir esperar a outra manhã. Também precisava de mais tempo, aqueles poucos segundos no corredor não eram mais o suficiente. Não podia arriscar um desencontro, e tinha que ser tão casual quanto pudesse parecer. Então pouco antes do fim da tarde, umas 16h, ele se aprumou com seu melhor terno, desceu para o estacionamento e ficou sentado no banco do motorista de seu carro, atento a qualquer movimento. Sempre que o portão da garagem se abria sentia aquela emoção adolescente e todas as borboletas voando no estômago. Já eram quase 20h quando o sedam prata de Fernanda entrou. Ele fingiu que também estava chegando e os três se encontraram na porta do elevador. “Boa noite! Como este dia foi longo, não?”, mesmo para reclamar Seu Antenor tentava manter o clima descontraído. “Bom noite! Muito longo! Tão maçante e entediante como os filmes do Woody Allen.”, comentou Fernanda com uma leve risada. “Então você preferiria que tivesse sido uma loucura a la Tarantino?”, ele respondeu, e todos riram. O elevador chegou, eles entraram e começaram a subir. “Com certeza não queria ter uma vida a la Tarantino, mas não ia reclamar de um concurso de dança de vez em quando.” “Para isso precisa de um par, né mãe!” “Paula!?” As duas riram, e Seu Antenor ficou sem saber muito o que fazer. Chegaram no sexto andar e quando se despediam ele tirou coragem não se sabe da onde. “Vocês já jantaram? Seria pretensioso da minha parte convidar vocês para comer uma pizza comigo aqui em casa hoje?” “Claro que não! Aceitamos! Vamos só deixar as coisas em casa e já batemos na sua porta!” Paula respondeu de bate pronto, enquanto Fernanda e Seu Antenor admiravam um o outro sem saber como reagir.
Seu Antenor estava descontrolado a hora que entrou em seu apartamento. Tirou os papéis de cima da mesa e jogou tudo numa gaveta. Escondeu os cinzeiros e a louça suja dentro da máquina de lavar roupas. Baixou a tampa do banheiro e borrifou quase um vidro de perfume no ar. Tirou o terno e vestiu calça jeans, camisa de flanela e tênis. Pegou um vinho que tinha guardado para visitas especiais e deixou de prontidão. Sentou e ficou esperando de pé olhando para a porta. Primeiro em silêncio, mas começou a se sentir nervoso e ligou o rádio numa estação que tocava músicas dos anos 80. Estava tudo muito claro na sua cabeça. Tinham nascido um para o outro com certeza. A garota era a filha que ele nunca teve e que tanto sonhou. Os sinais gritavam tão alto que ele mal podia esperar pelo momento certo. A campainha tocou, e era como se o chão tivesse simplesmente desaparecido de debaixo de seus pés. As duas entraram e sentaram no sofá. Enquanto elas pediam a pizza ele abria o vinho. Falaram sobre a rotina do condomínio, de como a mulher do 21 era fofoqueira, o barulho do 44 que todo o quarteirão podia ouvir, e de como a vida pode ser curta se não se sabe aproveitar o melhor dela. O telefone de Paula desatou a apitar, e ela foi atender o namorado no seu apartamento. Estavam os dois a sós, com o vinho já quase no fim, quando os olhares se cruzaram durante aquele instante de silêncio que sussurra “sim” baixinho no ouvido. Fernanda se encolheu no sofá e alisou o cabelo como que pedindo um carinho. Ele não exitou. Se aproximou dela, pegou sua mão e abriu seu coração. Contou que a mais de mês observava mãe e filha, e que vivia de imaginar como seria a vida com elas e que não suportava mais conviver com aquela sensação apertando o peito. A jovem Senhora se afastou, um tanto quanto assustada. Ela não estava pensando em mais que um beijo, por enquanto. Não esperava por aquela revelação. Sem falar uma palavra se quer Fernanda levantou e saiu do apartamento sem olhar para trás. Seu Antenor acendeu um cigarro, terminou sua taça de vinho, o que restava da dela, abriu a porta da sacada, e se jogou do sexto andar.