TODOS SÃO FILHOS DE DEUS

Guto estava na Ofner da Rua João Cachoeira. Tinha ido tomar um café, coisa que gostava de fazer. Sempre gostou daquela loja, esquina com o trecho mais bonito da avenida 9 de Julho, de fato, uma das regiões mais belas da Capital paulista. Tarde de outono com sól. As meninas se vestem bem, mas ainda é permitido andar com os pés de fora. Sandálias, chinelinhos, tiras, saltos e incontáveis pézinhos bem tratados. Guto não andava cabisbaixo, ele estava mesmo era olhando o pé das moças, sempre. Além do café bem tirado, o local também tem excelentes tudo o mais. Domingo, sem parada na Ofner, não era domingo. Além das paulistanas bem vestidas, à porta estacionam belos carros e motos deslumbrantes. O tipo do lugar para sentar e assistir.

Não longe dali, o Shopping Iguatemi fornece outra incontável legião de beldades. Mulheres bem tratadas, a tropa das ricas e bonitas que se cuidam. Mas é local grande, para quem gosta de andar. Tem o seu lado positivo, afinal com tanta vitrine, o disfarçar se torna simples. Se for flagrado, basta desviar o olhar para a vitrine. Já na Ofner não tem para onde olhar, disfarçar, pois o lugar, nesse sentido, é pequeno, com poucas opções.

Quando estava para terminar seu café, notou a presença de uma mulher, que a princípio pensou ser Maria Luiza Mendonça. Depois teve certeza de que não era. Ela é carioca. Ou era. Mas podia ser irmã gêmea. Ah, podia sim. Estava linda, o cabelo liso, escorrido, ólhos grandes carregados no rimmel, dark. Sózia de atriz ou de um personagem? Não se sabe ao certo. Ficou ali, imaginando, refletindo por minutos. O suficiente para ser notado por ela.

Se aproximou, sentando: “me paga um café?” ... “o quê?...claro, claro... é só pedir”. Ficou perplexo. Na verdade, não estava entendendo bem. Uma abordagem inusitada e absolutamente surpreendente. “Vera, e você?”... “Guto ... seu café” ... “Obrigada”. “E aí, bonitinho, tava olhando o quê?” Guto pirou. Ninguém, jamais, havia se dirigido a ele assim. Aquele mulherão falou e ele mandou direto, olhando no fundo da alma dela: “você”! Ganhou um sorriso, tudo de bom, céu de Brigadeiro. Ela se ergueu e, sem sair da cadeira, tocou-lhe a mão. Ele sentiu um tremor na parte interna da coxa. Instantâneo. A moça recostou-se e cruzou as pernas balançando seu pé direito bem perto do Guto. Swarowski. Assim ficou. Guto perdeu a noção do tempo e do espaço, catapultado. Uma eternidade. Vera atenta, disparou: “gostou do pézinho?” e na hesitação dele emendou, “se você se comportar, eu deixo ver o resto”. Guto, até tossiu. Isso devia ser proibido, pensou, estas birutas estão perdendo a noção, vão logo atacando e, não se contendo, agarrou no pé dela. Ela sorriu, “no seu carro ou no meu?”. “Estou à pé...”. “Paga, que eu te espero alí...”. Guto estava enfeitiçado, chegou a levitar (confessaria depois para os amigos). Certamente, naquele momento, o universo estava conspirando a seu favor, imaginou.

Logo, o Vallet veio com o carro, um Mini Morris vermelho, faltou-lhe o ar. Combinava com ela, igual jóia exclusiva, tipo Camila Lovisaro. Vera riu um riso solto, feliz. Saíram, dobraram à esquerda na Tabapuã, depois São Gabriel e, finalmente, Av. Santo Amaro. Vera tirou o I-pod da bolsa e ligou, caiu atrás do banco. Mágica. Um som, depois controlado por botões no volante, invadiu o ambiente. New India seguido de Gopichant, do cd Buddha Lounge. Guto conhecia tudo sobre esse cd, adorava-o... nossa! Começou a falar e só parou quando ouviu: “desce, chegamos”. Espantado, constatou que a realidade continuava teimosamente a existir. Estavam no Campo Belo. Como o nome já diz, não vamos perder tempo com o bairro. Rua Dr. Jesuíno Maciel, é só o que precisa ser dito. Guto desceu do carro, boquiaberto, dopado. Quando viu, já estava na sala de um belíssimo apartamento, decorado por uma profissional competente, com certeza. Ele só conseguia olhar para ela, mais nada. Já estava apaixonado, sem saber que ninguém se apaixona pela pessoa e sim, unicamente, por situações. Por isso as paixões são fugazes. As pessoas mudam, deixando de fazer parte do conjunto, do ambiente, que gerou a paixão. O tempo passa e a paixão fica para a memória. O lugar tinha um piso lustrado, brilhante, carrara, com sistema de aquecimento embutido.

Vera, imediatamente descalça, chutara longe suas rasteirinhas, veio com duas latinhas. Tinha toda a iniciativa das aquarianas, parecia ter uma intuição elétrica, em espasmos. Guto sentou. Uma chaise longue, preta com tubos cromados. Le Corbusier. O lugar ainda tinha um minúsculo projetor no teto, com tela que sobe e desce a um toque e um Manabu Mabe na parede. Guto ali, sentado. “Me fale de você, o que faz?”, voz suave, zen, quase musical. E Guto, ali sentado. Após breve silêncio, Guto arriscou, afinal o universo conspira: “apaixonei...”. “Por mim?, impossível...”, e como quem comenta o clima, arrematou: “você não me conhece e não diria isso se me conhecesse”. Isto, dito assim, “en passant”. Insistiu: ”... deixa eu beijar seu pé?”, “Com uma condição...”, ligando o som, “...de terminar o que começou...”

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 11/05/2007
Reeditado em 17/01/2010
Código do texto: T483115
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