Pequena historia de uma grande paixão

Pequena história de uma grande paixão.

Ylagam

Era apenas mais um entre os milhares de carros que deslizavam preguiçosamente pelo asfalto molhado e o transito engarrafado daquele fim de dia. Perdido na imensidão da cidade, por ruas e avenidas já decoradas pelo habito de ir e vir diário o “fusquinha” se escondia por entre os muitos outros “fuscas” iguais na cor, no modelo no ano meio fora de linha, mas ainda cumprindo a sua missão, pensou esboçando um arremedo de sorriso, enquanto pela sua esquerda e direita, traseira e frente desfilavam tantos outros tipos e modelos mais modernos e possantes.

Escondia-se no mesmo ruído ao arrancar ou frear. Se escondia na mesma voz. Apenas um numero o fazia diferente, apenas um numero o fazia seu. Mas, o que é um numero senão o antecedende ou o conseqüente de um outro?

Para ela, no entanto este mesmo número tinha um significado especial. Dava-lhe um certificado de posse,dava-lhe a certeza de que poderia com tenacidade,perseverança,ser sempre vencedora.

Aquele número fazia do seu pequeno, em tudo igual aos outros, o “seu” carro, portanto um carro único, embora igual a tantos outros que trafegavam na mesma direção naquele principio de noite chuvosa de um dezembro qualquer preso no calendário. Dentro da latinha-móvel, Bethânia fazia-lhe companhia com sua voz personalíssima, contando a estória muito conhecida e até vivida de... Um pequenino grão de areia/ que era um pobre sonhador/ olhou pro céu viu uma estrela...

Olhou para o céu cinzento onde nuvens pesada corriam de um lado para o outro, sem a interrupção de semáforos ou engarrafamentos, de encontro ao negrume da noite que se avizinhava e percebeu as muitas estrelas que se acendiam ao toque de botões, criando céus dentro das vitrinas. Os luminosos piscavam sem parar,numa “paquera” constante aos transeuntes apressados que cruzando entre si,chocavam-se uns nos outros tal a pressa de chegar.

Era Dezembro. Liza apercebeu-se disso ao notar a decoração apelativa que as lojas ostentavam. Sinos, árvores com flocos de algodão simulando neve a quase 40 graus. Estrelas em céus fabricados e aquele velho enorme,maior ainda em suas roupas vermelhas e barbas brancas,equilibrando-se dentro de um trenó carregado de pacotes e o convite irrecusável,...Compre nas lojas tal...e o seu Natal será melhor!

Pensou no orçamento equilibrado, não no trenó, mas nos bolsos.

Quantos anos já se passaram? Cinco, dez, nenhum? E importa? Basta fechar os olhos e ela estará lá.

O nariz amassado de encontro à vitrina. O corpo magricela e trêmulo vestido com o frio daquela tarde chuvosa. Os cabelos desalinhados pelo vento e pela inconsciência da vaidade escorrem pelos ombros que sustentam uma cabecinha cheia de sonhos, quase sempre acordados pela dura realidade. As mãos espalmadas grudam-se no vidro grosso da vitrina. As mãos espalmadas descrevem um movimento de sobe e desce como uma suave caricia nos objetos protegidos pelo vidro.O nariz amassado de encontro aquela redoma dificulta a respiração.Abre então a boca buscando o ar e o vidro embaçado pelo seu hálito quente mancha do outro lado o polido das coisas inacessíveis.

O vermelho do sinal que se fecha a traz de volta a realidade e a obriga a uma freada brusca. Olhos bem abertos, Liza vigia as cores do semáforo.

Os olhos imensamente abertos da menina observam cautelosos os movimentos do velho dentro da loja. É preciso ter muito cuidado para que ele não a perceba, ali, parada, Sabe que se a vir novamente provavelmente vai enxotá-la como todos.

O sinal vai abrir. É preciso não descuidar. Pés e mãos obedecendo a um sincronismo de anos de treinamento movimentam o carro que atravessa o sinal, empurrando a uma distância protetora o carro à frente e fugindo na mesma do que vem atrás. Mantenha a distancia, aprendeu numa das primeiras lições do auto-escola e. da vida.

O velho dentro da loja abaixa-se sob o balcão e a menina vasculha com os olhos o interior das prateleiras, por todos os cantos da loja, procura encontrá-lo. O sonho de todas as noites a esperança de todos os dias.

Sinal aberto, a seta piscando avisa que alguém a sua frente vai virar. Pelo espelho retrovisor percebe outro querendo ultrapassar.Sim é preciso muito cuidado, muita atenção,qualquer descuido pode sair caro demais. O pé pisa fundo no acelerador, velocidade aumentada, um outro lugar mais a frente.

Uma angustia crescente toma conta da menina que sente o coração acelerado dentro peito. Esgueira-se pela porta adentro e encolhe-se atrás do balcão,sempre atenta aos movimentos do velho que procura não sei o quê sob o balcão. Talvez os óculos.

Parada em meio ao trafego lento, Liza estende a mão para o porta-luvas a procura dos cigarros. Espreguiça-se, acende o cigarro, aspira forte a fumaça e se delicia com esta primeira tragada, sentindo o prazer de sabê-la dando voltas dentro de si. Pode acompanhá-la até alcançar os pulmões. Sente-a, a curva feita e cá esta ela de volta saindo pela boca em filetes azulados. Sabe que não devia, sabe do mal que faz, mas assim mesmo, continua.

Bethânia como que acompanhando aquele momento canta... ”- se quiser beber eu bebo/ se quiser fumar eu fumo..”e sua voz invade o carro, gritando seu livre arbítrio. Sinal aberto. Trincando os dentes no filtro, sente-o amolecendo entre seus lábios, visualiza a cena grotesca, deselegante para uma jovem mulher. Um cigarro dependurado na boca como qualquer machão, como qualquer Humphrey Bogart e seu olhar enviesado. Mais uma vez sorri de si mesmo e de suas criações imaginativas.

O velho ergue-se de sob o balcão. Há um imperceptível trincar de dentes, os lábios tremem,aperta-os tentando reter um acesso de tosse. Encolhe-se ainda mais atrás do balcão, já não é uma menina, mas um feto, tentando escapar do olhar cansado daquele guardião implacável do objeto do seu desejo. Sente medo. Medo que ele a descubra ali e não consiga explicar que quer apenas estar perto dele, talvez tocá-lo, fazê-lo vibrar em suas mãos. Não sabe bem porque ele a atrai tanto, porém sabe que um dia estarão juntos pela vida a ser vivida.

Cabeça debruçada sob seu corpo, ouvido atento ao seu soar, dedos deslizando suaves e firmes pelo seu braço enquanto o toca com os pelos tensionados pelo arco, na medida exata para fazê-lo vibrar, emitindo sons divinos que emanam de todo seu corpo.

Mais alguns segundos com a fumaça presa nos pulmões. Bethânia recomeça seu cantar. Resto de cigarro atirado pela janela. Uma pequenina brasa rola pelo asfalto molhado e apaga-se sob outros pneus.

O velho saí bamboleando o seu corpanzil em direção a porta dos fundos. A menina respira aliviada. Medo controlado desfruta daquela proximidade. Com medo de perder, perde-se os melhores momentos da vida. E foi assim que ela decidiu.Vai chegar onde se propuser. Não vai ficar a vida toda com o nariz amassado de encontro à vitrina. Vai lutar,vai perseverar e chegar onde quiser.

A vida seguiu seu curso. Os anos se passaram e Liza esta chegando. Mais um sinal fechado. Aproveitando este hiato dentro do transito infernal, dirige seu olhar para o banco traseiro do carro certificando-se da presença dele ali, repousando tranqüilo.

Na fila de carros parados a sua frente enquanto acende mais um cigarro, Liza presta atenção à garota que se aproxima das janelas, oferecendo sabe-se lá o quê aos motoristas que se apressam em fechar os vidros tentando isolarem-se da realidade, imaginando estarem se protegendo dentro daquela redoma móvel. As meninas estão sempre de um lado ou do outro dos vidros grossos.

Mais uma tragada e a fumaça de volta em seus filetes azulados, dança contente no ar após ter cumprido seu papel de depositar um pouco de veneno no organismo, deixa seu aroma impregnando o carro. Liza promete a si mesmo: - vou parar de fumar.

A garota se aproxima. Alguma coisa nesta criança franzina mas com um olhar determinado mexe com suas lembranças,existe entre elas uma cumplicidade velada.

O sinal abre e os carros arrancam arrancando Liza de suas lembranças e neste turbilhão lá vai o “fusquinha engolindo o asfalto esburacado das ruas. O carro avança pela avenida apostando uma corrida louca com as cores dos semáforos que vão ficando para trás como a garota vendedora de guloseimas do sinal. Guloseimas que ninguém quer comprar. Vai ficando para trás como a menina cheia de medo e nariz amassado de encontro a uma vitrina. Vai ficando pra trás como o papai-noel em cima do prédio e o velho barrigudo dono daquela loja no passado. Mais uma curva na avenida e finalmente virando a esquerda o luminoso com aquela garrafa enchendo um copo grita para Liza: -“ Isto faz um bem!”e ela sorri novamente desta frase promocional”.

Procurando o costumeiro lugar pra estacionar, Liza manobra o carro em direção à velha nogueira do fim da rua sem saída. Sob a árvore o fusca resfolega num último suspiro e o velho motor para. Abre a porta desce e com muito carinho retira do banco traseiro seu companheiro bem amado. Com cuidado segura-o pela alça do estojo e atravessa a porta do prédio.Para diante da porta do elevador aperta o botão e espera. Engolida por aquela caixa enorme começa sua lenta escalada. Dentro dela uma garota magricela de cabelos escorridos escondida no corpo bem feito e cabelos bem tratados da mulher de hoje, conta:

1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, Ufa! Até que enfim. Olha o relógio, a porta do elevador se abre despejando-a no corredor comprido e deserto.Seus passos apressados ressoam no piso encardido quebrando o silencio,acordando as paredes recém pintadas.

A garota dentro de si imagina-se apertando todas as campainhas dos apartamentos vizinhos. Contém-se, mas ri silenciosamente deliciando-se com a traquinagem não realizada. Afinal é alguém de respeito, bem educada. Uma musicista respeitada e quase famosa.Existe isso? Quase famosa? Não importa. O fato é que esta chegando onde se propôs. Resquício da promessa feita por uma menina medrosa mas determinada que vivia encostando o nariz na vitrina de uma determinada loja de instrumentos musicais.

Na iminência de ser tragada mais uma vez por aquela boca de madeira a que chamam porta, sente uma espécie de alivio. Olha a sua volta e percebe que esta tudo bem, entra e como todas as noites dá de cara com ele descansando na estante junto à janela, entre alguns troféus e medalhas conquistados ao longo dos anos de estudo e conquistas. Aquele que sempre foi a mola mestra, a inspiração para a sua vitoriosa batalha contra os percalços que a vida reserva. A paixão primeira da sua meninice.

Um pequeno violino de brinquedo.

Ylagam Guidugli
Enviado por Ylagam Guidugli em 31/05/2014
Código do texto: T4827700
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