PERDÃO OU VINGANÇA

Heloísa sofria demais com Geraldo. Desde que se casaram, foram muitas noites em claro à espera do marido bêbado que, ao chegar, violento, cobria-lhe o corpo de pancadas. Depois, ele desmaiava e ela tirava seus sapatos, ajeitava-o na cama. Resignada, silenciosa, serva. Até doença venérea, pegou. Por um aborto mal sucedido que fizera, obedecendo à ordem do seu homem, não podia mais ter filhos. O que não era de todo ruim, pela vida que vivia, mas mesmo ciente disto, sentia uma tristeza profunda, uma sensação de incompletude. Certa vez, ele chegou ao extremo de obrigá-la a acompanhá-lo em seu encontro com a amante, uma profissional do sexo por quem estava desatinadamente apaixonado, e dizer coisas humilhantes. Chamou a mulher até o portão da casa em que ela morava e trabalhava:

– Fala, Heloísa, fala o que cê veio falar. Anda!

Ela hesitou, tentou ir embora, mas foi pega pelo braço e sujigada com brutalidade:

– Por favor, não deixa o meu marido! A gente precisa docê!

E ele:

– Fala mais!

– Eu sei que não sou digna nem mesmo de olhar no seu rosto! Cê é melhor do que eu, é mais bonita, é muito mais importante, merece meu marido mais do que eu!

– E ocê, o que cê é? – pressionou Geraldo.

Heloísa emudeceu, como se uma placa de vergonha vedasse suas cordas vocais. Ele a pegou pelos cabelos, aos solavancos. Ela, com indescritível dificuldade, continuou:

– Eu sou um lixo! Sou a escrava que beija seu pé!

E se amoleceu de chorar. A amante, também com os olhos cheios d'água, assustadíssima, entrou e atabalhoadamente trancou o portão, correndo e gritando:

– Saiam daqui! Saiam daqui!

Foram inumeráveis acontecimentos tristes. Os vizinhos, testemunhas de muitos destes, não entendiam tamanha passividade. Nem mesmo a própria vítima conseguia entender por que suportava tudo aquilo. Dependência? Covardia? Amor? Loucura? Falta de caráter? Não, não sabia. Apenas sabia ser incapaz de alguma atitude.

Geraldo que se cansou. Numa tarde de sábado, foi para o bar e não voltou mais. Sumiu. E Heloísa foi obrigada a sobreviver sozinha. Felizmente, pôde contar com o apoio de alguns vizinhos compadecidos com sua condição. Até emprego de faxineira arrumaram para ela, que não perdeu tempo, tratou de entrar logo numa escola de alfabetização para adultos. Aprendeu a ler, escrever e fazer contas com rapidez e apuro admiráveis. Lia compulsivamente e comunicava-se como se tivesse mais instrução do que tinha de fato.

Mas quatro anos depois, o marido voltou. Encontrou-a já estabelecida, recuperada moral, emocional e financeiramente. Era provedora de si mesma. Sim, ele voltou. Voltou desempregado, miserável e enfermo. Bateu na porta do velho barraco onde a havia deixado a se virar com aluguel e outras despesas. Estava abatido, imundo, barbado e tossindo muito. Assim que ela atendeu, ele se jogou a seus pés:

– Me perdoa, Heloísa! A vida tem me castigado demais, mas não reclamo; estou pagando por ter feito ocê sofrer. Mas agora eu preciso de ajuda, não tenho pra quem recorrer.

Ela penetrou seu olhar vingado no dele, perdedor e mortiço, e apenas disse:

– Entra.

A esposa abandonada acolheu o marido prófugo. Alguns vizinhos se indignaram, outros admiraram a atitude nobre de Heloísa, chamando-a até de santa; isto a deixava satisfeita, vaidosa, sentindo-se mais do que gente. “Ora, santa?”... “Eu, santa!”... Nunca pensou ser tão admirada; e mesmo os que não admiravam, falavam dela. Sempre que a questionavam diretamente, repetia: “é meu coração que é muito mole, não posso fazer nada, eu perdoo ele”. Foi o assunto do beco por um bom tempo. Não quis saber por onde Geraldo andou, o que fez, como e com quem viveu, nada. Quando ele ameaçava dizer algo sobre seu longo período de ausência, ela o mandava calar-se e era de imediato obedecida. As posições se inverteram. Não permitia que o homem sequer se aproximasse, a comunicação entre ambos se fazia por raros monossílabos.

O doente piorava mais a cada dia, a despeito das tantas horas perdidas na Unidade de Pronto Atendimento. A esposa sempre participava dessas perdas, pois fazia questão de acompanhá-lo. Ela assumiu todo o tratamento da tuberculose agravada pela negligência do paciente. Cuidava dos horários dos remédios, media temperatura e pressão arterial, aprendeu a aplicar injeções, tornou-se quase uma enfermeira. Saía cedo para a lida, mas como os apartamentos em que trabalhava eram próximos, entre uma faxina e outra, corria à casa para tratar do marido. Mas Geraldo se abatia progressivamente, estava ainda mais fraco, mal se alimentava, nem falar conseguia direito. Os médicos não entendiam o porquê, uma vez que as drogas eram eficazes noutras pessoas. Decidiram interná-lo, mas Heloísa não permitiu; conseguia, através de uma ONG, toda a medicação, oxigênio e outros aparelhos necessários ao tratamento; fazia questão de cuidar do doente. Proibiu visitas e isolou-se com ele no barraco, só saindo para fazer as faxinas, àquela altura, já bem reduzidas. Sua dedicação era absoluta.

Passado um tempo, Geraldo, que não se levantava mais da cama, perguntou-a, enquanto ela o limpava e trocava seu pijama sujo de fezes ralas:

– Por que cê trata de mim, mesmo assim tão bruta e emburrada? Por que não deixa eu internado lá no hospital? Por que não deixa eu morrer?

Ela sentou-se na beirada da cama, observou os braços daquele resto de gente, esquálidos e feridos por picadas de injeção, sentiu uma ânsia de vômito pelo mau cheiro, abaixou a cabeça, voltou a olhá-lo e respondeu:

– Porque me faz bem saber que você depende de mim pra continuar vivo; pra te mostrar que sou melhor, mais importante do que você e aquela puta, que na certa meteu o pé no seu rabo na primeira sarjeta. Você não é digno sequer de me olhar no rosto, não me merece, é um lixo, meu escravo sem serventia, só não beija meus pés porque não quero. Sou até chamada de santa! A santa que te alimenta, mata sua sede, comanda sua vida. Eu tento controlar esses remédios, pra que você não pare de sentir agonia, mas não morra. Ah, quem me dera se tivesse o poder de te deixar vivo por muitos e muitos anos e com a consciência perfeita pra sentir as aflições das febres, cada fincada de agulha, cada falta de ar quando desligo o oxigênio pra te fazer levantar a mão, com essa dificuldade patética, implorando socorro. Eu te aceitei de volta pra te humilhar com meu perdão!

Só interrompeu a fala por causa de uma tosse seca e insistente que a incomodava havia algumas semanas.

Marco Aurelio Vieira
Enviado por Marco Aurelio Vieira em 28/05/2014
Reeditado em 28/05/2014
Código do texto: T4823012
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