Figuras da rotina
Os dias são quase sempre quentes na metrópole; o excesso de gente marca o compasso acelerado da produção dos insumos, dos plásticos e silícios, do que a gente que foi e é, a cada dia mais se torna. Os dejetos necessários da produção consomem o espaço que um dia se deu à vida, e a vida, consumida, arde. O calor é quase sempre insuportável na metrópole.
Os pés dos membros desguarnecidos do capitalismo quase sempre jazem descalças sobre o asfalto – o sofrimento pelo qual se angustiam os poucos que se importam, no fundo, lhes ajuda a recolher aquilo com que vivem, afinal de contas. Os dejetos de uma relação desumana. A desumana relação humana. A humanidade talvez se queira bem demais, esquecendo-se do cerne do que produz.
Paga-se o mesmo preço por um mecanismo que permite que se conecte ao mundo todo instantaneamente e por um aparato que permite que o veículo utilizado seja isolado do contato com o restante do mundo. Valores profundamente distantes, mensalmente, pelo serviço de acesso ao mundo virtualizado e pela exclusão do mundo real produzido. Os valores pagos, naturalmente, nada significam. O valor do capital é sistematicamente esvaziado pela atribuição simultânea de valores disparatados a produtos que já não fazem o menor sentido.
Em um mundo ressecado, o artista que pede esmolas encontra seu rosto, sempre seu rosto, pedindo a si mesmo os trocos que dará a alguém que não merece. Ainda que quisesse, não encontraria alternativas. Ainda que tentasse, encontraria todo o campo de vista tomado por portas fechadas e fachadas às quais não tem acesso. A vista ao céu foi tomada – a todos, exceto aos que habitam coberturas ou freqüentam clubes e incluso aos artistas que pedem esmola – pelos edifícios.
A tristeza ou a pena que toma aos poucos que se importam dificilmente permite o acesso à realidade massacrante dos fatos. A certeza de que nada mudará dificilmente é tolerada. Grosso modo, não se tenta mais, e ninguém pode ser culpado.
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Nossa! Poderia escrever algo a respeito destes garotos que fazem malabarismo no semáforo. É uma figura interessante, mesmo – talvez pudesse focalizar no rosto, no sofrimento do rosto que faz malabarismos, malabarismos que nem ao menos divertem os executivos parados em seus carros com a cabeça perdida em algum lugar entre o emprego e o seriado da tevê a cabo. Seria interessante trabalhar os significados do malabarismo, transitando entre o malabarismo concreto que eles fazem, as firulas com as bolas, o equilibrismo, por um lado, o malabarismo pela sobrevivência, a luta, a fome, a miséria, por outro, e por vezes inserindo o malabarismo das relações sociais, os pesos e as misérias de tantos que vão sendo manuseados, às vezes contra a própria lógica da gravidade ou das possibilidades dos humanos, mas que vão continuando e continuando por gerações que parecem sem fim.
Poderia também trabalhar com a parte posterior, quando, conhecendo exatamente o momento de parar e transitar entre os carros antes de o sinal abrir, o malabarista passa por entre as janelas, vendo seu próprio rosto refletido no insul-film, pedindo a ninguém ou a si mesmo... o quê? O que é que se pede ao executivo do carro? Nada, e, ao mesmo tempo, tudo. O malabarista não espera do executivo a saída para seu dilema, a solução para seu problema, o pão que deveria ser nosso, mas é só deles. O malabarista pede o troco como lhe foi ensinado, comove como saberia algum outro que seria comovente, recolhe os trocados que alguém sabe que é o que se consegue ao dia, entrega ao alguém e recebe de volta aquilo que lhe foi prometido. O malabarismo é um emprego.
Acho que hoje era dia de pagamento... não sei. De qualquer jeito, não trouxe cheque nem nada.
E, afinal de contas, por que alguém se dedica a estes malabarismos todos? Por que não arromba uma janela, ao invés de se sujeitar a implorar por que ela se abra e seja dado o que se considera supérfluo?
Difícil tentar entender racionalmente um comportamento tão carnal assim. Difícil encontrar o que move essa gente toda a continuar nessa luta de cartas marcadas como se houvesse uma solução. Acho que as coisas são assim mesmo, a gente tem que respeitar mesmo esses lutadores que conseguem se manter na honestidade apesar de tudo estar contra eles.
Inclusive, acho que esse tema não ficaria muito bom na redação, não. Como eu conseguiria pôr voz no pensamento deles? Preciso de um tema mais simples, alguma coisa tipo a globalização ou a política americana, senão a professora vai dizer que eu estou sendo incoerente, pondo meu discurso e meu raciocínio na cabeça de gente simples, que não poderia pensar assim.
Finalmente, cheguei. Preciso pedir à minha mãe que ache uma academia mais perto de casa. Essa me faz perder muito tempo.
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É freqüente que carros passem no sinal vermelho. Neste caso, a coleta fica prejudicada, já que a apresentação nunca se altera.
O artista caminha rumo ao centro da rua, mostra a todos, com as mãos necessariamente sujas, os instrumentos a serem utilizados no espetáculo: três limões de tamanho médio, porém todos de mesmo tamanho e peso.
Concentra-se rapidamente – tempo demais se perde na formalidade da apresentação que, no entanto, é imprescindível – na mão esquerda, e principia os arremessos. A seqüência de arremessos deve ser perfeita para que se possam apresentar os números diferenciais: estes garantem a colaboração dos presentes. Não se trata de comover, nem de demonstrar o esforço e a habilidade do artista, mas de tornar patente o desajuste e a estranheza da apresentação em relação a seu contexto. A colaboração não decorre da pena, mas do estranhamento do presente.
Os números diferenciais consistem em: primeiramente, concorrem aos arremessos passos laterais dados pelo artista, que devem ser acompanhados pelo ajuste dos lançamentos: o que se chama lançamento de ajuste, pois aos demais lançamentos não há alteração, consistindo a manobra na realização de um lançamento de ajuste concomitante à realização da passada. O segundo movimento consiste na retirada de dois limões do espetáculo, reservando-os à mão esquerda, utilizando o limão restante para arremessos em que o limão será equilibrado na ponta do nariz do artista. Este movimento deve ser realizado duas vezes, pois pode entediar o presente. O mesmo vale para o terceiro movimento, em que o limão é equilibrado à nuca do artista, sendo posteriormente arremessado de volta à mão do artista por meio de um movimento de inclinação da cabeça, com a qual o limão rola em direção à parte posterior da nuca, e com um subseqüente levantamento brusco da cabeça, com o que o limão é arremessado ao ar.
À apresentação segue a coleta. Neste momento, o artista deve se mostrar resoluto, mantendo uma postura ereta e procurando não demonstrar desespero ou persistência excessivas. Deve se tornar patente que não se trata de um pedinte regular ou de mendicância, apesar de as vestimentas do artista assemelharem-se às utilizadas por aqueles que se engajam neste tipo de conduta.
O artista deve sorrir a todos os momentos. É sabido que tal conduta tornar-se-á difícil, postas as contingências em que este se encontra e à fome que possivelmente o assolará ao momento da apresentação. No entanto, a fisionomia resultante da tentativa de sorriso em um rosto tomado pela miséria e pelo sofrimento tornam o espetáculo mais rentável.
O transporte e o treinamento dos artistas será providenciado. Os limões deverão ser adquiridos por aqueles interessados em se tornarem artistas. A remuneração será fixa por dia de trabalho, podendo ser descontados os desempenhos abaixo do mínimo estipulado para o exercício satisfatório da função.
Admitem-se crianças e jovens, preferencialmente magros. Estes serão acompanhados e supervisionados no exercício de sua função.
Will - Abril de 2007