BOM JESUS EM CHAMAS

Um grande clarão se estendia sobre os pobres casebres da Rua Juscelino Kubtscheck na periferia do Bom Jesus. As chamas que se erguiam ameaçadoras, devorando móveis velhos, anunciavam um trágico desfecho.

Os antecedentes dos acontecimentos que figuraram um dos episódios mais dramáticos do pacato bairro Bom Jesus em São Luis do Maranhão, não foram, até hoje, esclarecidos detalhadamente. Uma das versões mais verossímeis conta que dois casais de religiosos evangélicos, membros da Igreja Assembléia dos Santos Apóstolos, reuniram-se respectivamente na casa de um e de outro, onde deram início à uma série de incêndios nos quais lançaram às chamas toda a modesta mobília que possuíam. O fato (como não poderia deixar de ser) chamou a atenção de toda a vizinhança de ambos os casais.

Especulou-se na época que decidiram unanimemente se desfazerem de todos os bens materiais que possuíam, conservando tão somente as roupas do corpo. Diz-se que, dias antes da deflagração do fatídico holocausto, os dois homens, os chefes de família envolvidos naquele insólito acontecimento, pediram conta de seus empregos. A demissão de um deles, apesar do pedido voluntário de conta, o que incorre em justa causa e consequentemente em anulação do direito de indenização, por ter sido um funcionário exemplarmente dedicado, recebeu da firma a quantia substancial de R$ 6000,00. O dinheiro serviu para alimentar as chamas que consumiu sofás, camas, armários etc.

A casa de um dos casais tornou-se uma espécie de sede onde ficaram reunidos. Oravam incessante e incansavelmente até altas horas da madrugada, Recitavam salmos, cantavam hinos e... jejuavam; e submetiam ao mesmo rigor pueril, os próprios filhos, pequenos demais para entender o que acontecia em volta deles. Portas e janelas se mantinham fechadas dia e noite. Ninguém saia nem entrava naquele nefando “santuário” exceto dois indivíduos, provavelmente moradores locais que, por demonstrarem neutralidade, conseguiram convencer aquela que parecia ser a líder do grupo ali reunido, a entrar e coletar alguma informação sobre os fatos. Estas duas testemunhas, por pouco não se deixaram conquistar pela forte eloquência da mulher que aparentava cerca de 30 anos, trajava um vestido de chita bastante surrado; era negra (como todos os outros, aliás) os cabelos carapinha desgrenhados, o rosto sebento denunciava a falta de asseio de vários dias. Um odor quase sufocante impregnava a sala. As crianças tinham as faces pálidas, tristonhas, olhavam pros visitantes de forma suplicante. A mulher, cujo nome é Maria dos Remédios pediu que o marido tirasse as crianças da sala. Quando este voltou, ela relatou os motivos da voluntária reclusão coletiva.

Não falou como quem se justifica, mas, como quem estava absolutamente convicta de sua retórica de tom profético.

“ Vocês verão” disse ela “daqui a dois dias vocês verão o que o Senhor fará entre nós. Nós recebemos o sinal e o anunciamos para toda essa geração incrédula e perversa. O Senhor disse que não viria sem antes anunciar aos seus fies servos seus últimos desígnios. Eles ignoraram, a própria igreja nos ignorou quando lhes lançamos na cara os caminhos tortuosos que estavam tomando. Mostramo-lhes abertamente como estavam sendo hipócritas. Porque trocaram a sã doutrina por tradições mundanas. Bando de sepulcros caiados!”

“E dizem que nós somos os loucos! Expulsaram-nos do templo quando o Espírito Santo, por meio de nossos lábios ungidos com seu poder, profetizou contra eles e suas práticas anticristãs! Mas nós, glorificamos ao Senhor por que do mesmo modo foram menosprezados os profetas dos tempos bíblicos e o próprio Senhor Jesus. Que aguardem a ira vindoura que não tarda chegar”

A mulher de aparência tão humilde e sofrida disse essas palavras com tão surpreendente paixão, que os dois visitantes ao se despedirem e seguirem seu caminho, puseram-se a pensar no caso de um modo mais tolerante. “E se eles tiverem razão” ponderavam. E enquanto se afastavam ainda puderam ouvir aos gritos de aleluia e glória ecoando casa adentro.

Nessa mesma noite um novo incêndio se fez notório advindo do quintal da casa do grupo de fies. As labaredas consumiam uma pilha de roupas, uma mesa, bancos de madeira, fogão tudo se desfazendo ao gosto das chamas, talvez os últimos objetos que ainda possuíam.

O Corpo de Bombeiros foi acionado. Antes que chegassem na localidade, o dirigente da congregação de que faziam parte os casais confinados, bateu a porta da casa e chamou pelo nome a líder do motim. Não houve resposta. O homem insistiu. A porta não se abria. Houve um intenso bate boca. Subitamente, então, a porta se abre e o dirigente , juntamente como um rapaz que o acompanhava foram pegos de surpresa pelos dois homens que saíram rapidamente à rua e lançaram-nos para o interior da casa. Trancada a porta, ambos foram agredidos violentamente. Cerca de vinte minutos depois os dois foram lançados porta à fora visivelmente machucados, as roupas mal cobriam suas vergonhas; os sinais da violência estavam espalhados por todo o corpo. As pobres criaturas só tinham a intenção de tentar persuadir aqueles que até duas semanas atrás tinham sido os mais zelosos membros da igreja, a abandonarem essa loucura em que estavam mergulhandos. Muitos socos e pontapés foram a resposta dos irmãos.

E os homens do Corpo de Bombeiros nada de chegar. As horas se passavam. Nos fundos da casa o crepitar de objetos de madeira consumida pelo fogo, podia ser ouvido na frente. Também era bastante audível os louvores que recomeçaram a cantar. Ouviu-se também o choro e gemido lamurioso das crianças. Preocupados, principalmente com o que podia acontecer aos menores, algumas pessoas próximas foram bater à porta da residência novamente. Pediam que lhe abrissem, pois tinham trazido comida para as crianças. Que não era justo que também elas sofressem as consequências daquela atitude insana. Em resposta a estas comoventes súplicas só se ouvia o entoar, indiferente de salmos em alta voz.

Uma turba se reuniu e cogitaram derrubar a porta e de lá arrancar as crianças “na marra”. Mas alguém próximo os persuadiu a não tomarem tal atitude, pois poderiam precipitar as coisas e colocar a vida das crianças em risco iminente. “Quem pode saber o que esses loucos podem fazer com essas pobres crianças? E se decidirem jogar elas no fogo?” temia.

Nenhuma solução aparente surgia. Os valorosos bombeiros conseguiram controlar o fogo entrando pelos fundos da casa vizinha cujas chamas ameaçava. Após terem detido o incêndio, os homens do Corpo de Bombeiros tentaram dialogar com o grupo fanático. Foram completamente ignorados, apesar de toda a demonstração de heroísmo.

O caso exigia uma solução urgente. Do lado de fora, apesar da incansável cantoria dos dissidentes, era possível ouvir, vez ou outra, o choro de crianças. O que exasperava ainda mais as pessoas que acompanhavam reunidos ali na rua como numa vigília interminável. A angústia tomava conta dos parentes, mas nada dissuadia aquela gente de sua radical determinação.

Veio do humilhado dirigente da congregação da Igreja dos Santos Apóstolos, depois da surra que levara a ideia de conclamar o pastor Marcos Rocha, líder local da região a qual pertencia. O pobre religioso estava convicto de que o pastor Marcos, com toda sua influência e conhecida retórica cristã, iria convencer aqueles irmãos a abandonarem seu plano escatológico. O que mais temiam era o risco de um suicídio coletivo e assassinato das crianças. Convocou os demais irmãos a orarem suplicando ao Senhor para que conseguissem encontrar o pastor antes que uma tragédia acontecesse.

Marcos Rocha Pires era pastor de uma das principais igrejas da cidade. Era o líder mais proeminente em São Luis, das Igrejas Assembleias dos Santos Apóstolos. Era além de sacerdote, oficial tenente da polícia militar do Estado, razão pela qual também fora cogitado para levar a um desfecho razoável, aquele se tornou um dos casos mais polêmicos do outrora, pacato Bairro do Bom Jesus. A imprensa, representada ali por um dos repórteres do Jornal Pequeno, estava ávida por uma tragédia ainda maior que prometia se desenrolar.

Quando o pastor Marcos Rocha chegou ao local, quase não conseguia descer do carro. A multidão obstruía o caminho até a porta da casa do grupo insano. Foi preciso a intervenção de dois policiais militares que vieram em sua companhia, para abrir caminho. Sob o olhar surpreso dos circunstantes que indagavam entre si quem era aquele indivíduo alto de rosto sereno, o pastor Marcos chegou próximo a porta da casa e antes de bater, ficou parado diante dela por alguns segundos. A curiosidade do público aguçava-se. Alguns desconfiavam do êxito daquela estranha missão. Após a breve pausa que parece ter sido mais longa do que realmente fora, o honorável pastor bateu à porta e se anunciou. Não fora ouvido. Tornou a bater e repetiu o seu nome. Agora com voz mais elevada. De repente, fez-se silêncio do lado de dentro da casa. Do lado de fora, semelhantemente, os expectadores também não emitiam nenhum som. Não ouvia sequer a respiração das pessoas.

“ Irmãos, abram a porta” disse o pastor “ deixe-me falar com vocês. Ao ouvirem aquela voz inconfundível, os quatro fanáticos quedaram-se surpresos. Um dos homens chegou à janela fechada, abriu a persiana e através da fresta eliminou qualquer dúvida. A perplexidade tomou conta do grupo.

“Abram a porta” repetiu o pastor. Recobrados da surpresa inicial, o grupo voltou a obtusidade do inicio. Maria dos Remédios falou próximo a janela: “Pastor Marcos, que a paz dos Senhor seja convosco. Peço perdão em nome dos irmãos que aqui se encontram comigo, pelas pessoas que lhe tiraram de suas muitas ocupações para vim até aqui. Perdoe-nos. Não somos dignos que entres em nossa humilde casa. Nada temos pra oferecer. Aceite nossas desculpas e uma advertência: fuja, amado pastor! Saia da presença desse infiéis. Nada fizemos para que viessem nos perseguir. Eles pretendem nos fazer mal mas o Senhor não permitirá. Mas um pouco de tempo e todos serão fulminados. Fuja enquanto há tempo meu pastor. E que o Senhor seja convosco".

O pastor Marcos ouvia atônito cada palavra. Concluiu que estava diante de um inusitado caso de fanatismo. O que mais o deixara apreensivo era o fato de aquelas pessoas pertencerem ( ou terem pertencido) ao numeroso rebanho que liderava. Mas não havia tempo a perder com essas reflexões no momento.

“Meus irmãos deixem-me entrar. Permitam-me compartilhar com vocês das bênçãos do Senhor. Queridos irmãos, eu também sou profeta de Deus e foi ele que me enviou até vocês”. As imponentes palavras do sacerdote, cheias de humildade parecia estar surtindo algum efeito; fez-se intenso silêncio do lado de dentro da casa. O clima era tenso. O pastor aguardava ao pé da porta uma resposta. Marcos Rocha achou prudente não confrontá-los diretamente. Não sabia, de fato, o que intencionavam. Decidiu agir como se estivesse em comum acordo com suas ideias, fossem quais fossem.

Os amotinados se entreolhavam, indecisos. De repente um dos homens se aproximou da porta ameaçando abri-la para a entrada do venerando pastor. Entretanto, Maria dos Remédios o interceptou com autoridade. “Não abra a porta, Firmino” gritou. “A porta que Deus fecha ninguém deve abrir”. E dirigindo-se ao pastor disse: “Somos gratos por sua preocupação conosco, pastor Marcos, mas pedimos que se retire. Nossos portais já foram ungidos. Os que estão do lado de fora não podem entrar e os que estão dentro não poderão mais sair. Vá embora, ou sua sorte será a mesma dessa multidão de ímpios.”

Apesar da perplexidade, Marcos Rocha não desanimou. Percebeu que poderia aproveitar da situação de breve confusão em que estavam ainda o resto do grupo, percebeu que Maria dos Remédios era a mais tenaz de todos ali reunidos. Não adiantava tentar argumentar com ela diretamente. Além disso, era mais perspicaz do que imaginava. O pastor optou por um novo estratagema. “Firmino” disse o pastor “ abra a porta, eu sou o anjo da igreja. Quando fogo e enxofre desceu sobre a cidade de Sodoma e Gomorra , Ló abrigou os anjos do Senhor em sua casa. Não me deixem aqui fora junto com esses pecadores, abra a porta, Firmino.”

A tensão no interior do ambiente impregnado era de indecisão. Os membros se entreolhavam desconfiados, indecisos, quase todos, Maria era a única irredutível nas suas convicções. Aos outros não parecia haver problema em deixar o “anjo do Senhor” entrar. Mas, Maria dos Remédios, implacável, lembrou aos seus companheiros, a fim de eliminar suas dúvidas, toda a obra que fizeram até ali. Estavam cumprindo a vontade de Deus. “Lembrem-se, irmãos que Noé não abriu a porta da arca senão depois do dilúvio; também nós não a abriremos até que venha a ira do cordeiro sobre essa geração. Nós recebemos a profecia, amados não retrocedamos agora.”

“Você recebeu a profecia, Firmino?” Perguntou o pastor aproveitando o oportuno momento de confusão. “Vocês todos receberam a profecia, até os seus filhos? Ou foi somente Maria dos Remédios que a recebeu? Como você pode saber se ela está certa, Firmino? Firmino o anticristo pode ter a face de uma mulher, irmão".

“Não lhes dê ouvidos, ele está tentando enganar vocês” gritou Maria se aproximando da porta e retirando a chave do trinco. Quando tentou engolir a chave, Firmino a segurou firmemente pelo pulso e tomou-lhe. Os outros dois irmãos, o marido de Maria dos Remédios, Sebastião e a mulher de Firmino, Raimunda correram para segura-la, pois estava fora de si.

Finalmente a porta se abriu. O povo lá fora comemorou. O soldado que acompanhara o pastor entrou rapidamente e procurou retirar as crianças. Outros soldados entraram e detiveram os membros do grupo. O pastor tenente pediu que não os machucassem. Todos foram conduzidos ao camburão da polícia militar e levados para o quartel.

Estiveram detidos por 2 dias no quartel da polícia militar. Após esse período, eles foram conduzidos ao hospital psiquiátrico para testes de sanidade. As mulheres foram liberadas primeiro. O diagnóstico lhes fora favorável. Até mesmo à Maria dos Remédios, a mais impetuosa do grupo. Depois dos sedativos, viram-se livre do surto que as dominava. Firmino e Sebastião foram acusados de agressão física, mas o dirigente retirou a queixa das acusações que pesavam sobre eles.

De volta ao lar e à dura realidade de suas vidas de favelados, ambos os casais, agora, tentavam retomar suas rotineiras tarefas. As mulheres no cuidado dos filhos pequenos. E os homens em busca de novos empregos. Firmino não suportou o vexame de ter pedido conta e voltar cabisbaixo a pedir para ser recontratado. Sentia-se extremamente humilhado. A ideia de ter que conquistar tudo de novo do pouco que possuía, começar do zero, o exasperava. Causava-lhe insônia todos os dias. Sebastião, não suportava encarar os filhos e a mulher; os dias que se seguiram, tiveram muitas discussões e no final, ele decidiu abandonar o lar.

Passados duas semanas depois do tumulto provocado pelos casais incendiários, Raimunda voltava para casa depois de um cansativo dia de trabalho, conseguia alguns trocados lavando roupas nas casas do conjunto próximo. Encontrou a casa imersa na escuridão. Achou estranho porque a essa hora Firmino já deveria ter chegado. Abriu a porta do quarto acendeu a luz e o que viu a estonteou, um grito lancinante escapou dos seus lábios os vizinhos mais próximos foram verificar o que estava acontecendo na casa ao lado, torciam para que não fosse uma nova onda de incêndio se reiniciando. Encontraram Raimunda encolhida num canto, falando coisas desconexas, e ao olharem para cima, próximo a cabeceira da cama do casal, pendurado em uma corda, o corpo inerte de Firmino com a língua para fora os olhos esbugalhados e pescoço inchado pelo nó firme da forca. Firmino não deixara carta de suicídio, não se despediu. Era iletrado. Mas todos sabiam o motivo por que decidiu dar cabo da própria vida.

EPÍLOGO

O pastor Marcos Rocha. Fez questão de levar suas condolências a viúva de Firmino. Ofereceu o seu apoio em tudo o que fosse preciso. Tentou entender melhor o que motivara aquela gente pobre, desamparada a terem tomado uma atitude tão destrutiva. Procurara informações com o dirigente e membros da igreja que frequentavam no Bom Jesus. Surgiram muitas especulações, muitas informações desencontradas. “Ninguém explica essas coisas pastor” disse o dirigente. “Eles foram dominados por forças ocultas. O diabo os enganou usando o instrumento dos santos: a palavra de Deus. É como eu consigo entender essa loucura.

" Você está sendo simplista demais, meu amigo. De fato as Sagradas Escrituras podem dar margem a ambiguidades perigosíssimas dependendo das interpretações. Sinto que talvez, tenhamos um pouco de culpa por não percebermos os sinais dessas rebeliões."

"Essas coisas têm acontecido com mais frequência do que imaginamos. Acho que estamos sofrendo as conseqüências do excesso de religião. Que Deus tenha misericórdia de nós. Agora, missionário, diga-me quem foram os dois rapazes de que me falou a viúva Raimunda, que os visitaram antes do definitivo confinamento? Quem sabe estes não nos poderiam esclarecer melhor o que realmente intencionavam.”

“Pastor, nenhuma das pessoas do local viu qualquer pessoa entrar ou sair daquela casa desde o dia anterior ao incêndio.

al morris
Enviado por al morris em 20/05/2014
Reeditado em 03/09/2014
Código do texto: T4813471
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